O que torna um filme clássico? Certamente esta é uma pergunta um tanto subjetiva. É o roteiro? Direção? Atores? Bom, cabe a você, caro leitor, responder essa pergunta nada fácil. Pois a grandiosidade de um filme que extrapola o seu tempo é vasto e edifica, principalmente, no clamor do público e crítica, penso que esses dois têm um papel crucial na forma como um longa-metragem é eternizado.

Veja bem, um filme é um trabalho de diversas mãos distintas que, juntas, se unem para realizar um trabalho de qualidade e que agrade a plateia. É a arte lapidada. Segundo Harold Osborne, “a obra de arte torna-se como que transparente e nós olhamos, através dela, para o que ela representa”*. A arte é representação, o cinema é uma representação, é sensorial também. Uma ruptura entre a realidade e ficção ou a união dos dois, pois um não vive sem o outro. Precisamos dessa fuga ou da aproximação com o real. Talvez isso seja um dos grandes méritos de um filme que é considerado clássico, cult: ele atinge a mente, o coração do espectador, causa dor, alegria, reflexão, etc. Uma tempestade de sentimentos, representados em infinitas possibilidades, como destaca Osborne.

Talvez quando Truman Capote escrevia Bonequinha de Luxo (1958), ele não imaginasse o poder que sua história aparentemente simples pudesse tocar fundo aos leitores. Mas tocou. Não demorou muito para que o filme fosse adaptado ao cinema ao comando de Blake Edwards. Mas a cereja do bolo estava por vir: Audrey Hepburn. A grande estrela. Muitos nunca assistiram ao filme; eu mesmo assisti pela primeira vez em 2018. Mas sabem da existência de Audrey naquele icônico vestido preto assinado por Givenchy, estilista e um dos maiores amigos e parceiros de Audrey. Compreendem o poder da arte e de como se transforma algo em clássico? Audrey ficou eternizada na pele de Holly Golightly, todos seus acessórios se tornaram tendência, os looks sempre copiados, e industrializados: canecas, almofadas, bolsas e afins. Todos ainda se conectam com aquele rosto classudo, olhar delicado, misterioso, mesmo sem ter assistido o filme! Um fenômeno que completa 50 anos em 2021.

ÍCONE FEMINISTA JÁ EM 1961

Audrey Hepburn é o tipo de estrela atemporal, star quality master! Ela imprime leveza, simpatia, mistério, fúria, doçura em uma atuação em camadas que vai caindo a cada ato e vamos descobrindo uma Holly Golightly diferente, uma menina mulher que busca por liberdade. Uma pequena travessa que quer se conectar com o mundo em que vive, ou seria o mundo que criou? Talvez ela tenha sido uma das primeiras personagens feministas. Ainda que não seja essa intenção, tampouco pauta no cotidiano de uma sociedade em 1961! Holly descobriu como ser dona do seu corpo, do seu destino, das suas escolhas, ainda que por caminhos tortos (como encontrar um milionário que lhe sustente), ela é convicta em suas ações. Ela usa da sua beleza e corpo para manter a sua crença (não esqueçam que ela é uma garota de programa de luxo). Mas o amor fala mais alto. Será mesmo?

Bonequinha de Luxo é um clássico muito mais por sua estrela que ele propriamente dito. Uma comédia romântica mediana, porém charmosa e com uma grande personagem. Todavia, deixa de ser interessante ao longo dos minutos tornando-se cansativo. São muitas ações que não são exploradas profundamente. Claro, uma adaptação nunca será tão complexa como o livro, mas ficou a desejar como, por exemplo, a dualidade entre o passado e presente de Holly/Lula Mae, assim como sua ligação com a máfia.  Um balaio com uma profundidade de um pires que compromete a sua narrativa.

A RAZÃO MAIOR DE UM CLÁSSICO

O amor idealizado entre ela e Paul Varjak (George Peppard, belíssimo!), também é um problema. Amor é pertencer? Ou união e companheirismo? Me parece que esses dois se conectam por não terem melhores partidos e por serem similares (ele é um gigolô de alto nível) e se entregam nessa paixão com muita química, porém conflituosa, pois moldar alguém ao seu bel prazer não é um amor real, mas um amor representativo.

Mas o que torna um filme um clássico? Em Bonequinha de Luxo, podemos dizer que é sobre a ambientação de uma Nova York dos anos 1960, as joias, o apartamento jovial de Holly, o texto de Capote, aqui, adaptado por George Axelrod. Tudo isso passaria despercebido se não fosse a presença iluminada, aventureira, irônica e avassaladora de Audrey Hepburn. Ela é a bonequinha, ela é maior que o filme. Sua elegância e simpatia lhe tornou clássica, como um Midas da 7° Arte, Audrey elevou o nível e construiu um legado particular em um único filme. E isso, meus caros, é um clássico.

*OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. Tradução de Octavio Mendes Cajado. Editora Cultrix, 3° edição. São Paulo. 1970.

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