Se, volta e meia, nós do Cine Set insistimos em falar nessa tal “New Hollywood”, bem, não é para menos. O movimento que, nos anos 1970, pretendia enriquecer o cinema americano com temáticas e abordagens inovadoras, combinando o caldeirão de comportamento da década precedente a uma sensibilidade experimental, cosmopolita, resultou num conjunto inesquecível de filmes – de fato, a última vez em que a criatividade, e não o lucro, foi a força motriz da indústria.

Foi a época em que jovens cheios de idéias e afinados com a moral tortuosa dos tempos – Watergate, Vietnã, crise do petróleo – legaram um conjunto de obras cuja franqueza e complexidade ainda hoje fascinam – melhor ainda, assombram. Nesse seleto escrete, onde seus rivais seriam caras como Francis Ford Coppola (“O Poderoso Chefão”), Terrence Malick (“Terra de Ninguém”) e Martin Scorsese (“Taxi Driver”), William Friedkin (1935, firme e forte aos 79 anos) foi, fácil, um dos nomes mais brilhantes – mas, se hoje a sua reputação não chega nem perto dos colegas, é porque, na trajetória do artista, o talento teve de lutar contra um gênio diabólico – metáfora que não é tão gratuita quanto parece.

Diretor “de arte”: os primeiros anos (1967-1970)

William Friedkin nasceu numa pequena família judaica de Chicago, de origem polonesa. O pai, um modesto vendedor de roupas, era um sujeito decente, sem grandes ambições. Já a mãe, Rachel, enfermeira e dona de casa extremada, que Friedkin tinha por santa, seria uma referência perene na vida do artista. Pouco afeito à escola, William só queria saber de duas coisas: basquete e filmes. A descoberta de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, na adolescência, e dos filmes de Henri-Georges Clouzot, como “As Diabólicas” (1955) e “O Salário do Medo” (1953) formariam a visão de mundo que o diretor imprimiria a todos os seus filmes: ambígua, de vilões cruéis e heróis, às vezes, mais cruéis ainda, onde nenhuma verdade é absoluta, e forças sombrias estão sempre levando os homens à loucura.

Mas, até que essa temática aparecesse, madura e instigante, em “Operação França” (1971), Friedkin precisou conhecer o “sistema” a duras penas. Após sair da escola, ele encontrou emprego na emissora WGN, de Chicago, onde foi galgando degraus até comandar a direção de seriados. Ao mesmo tempo, perseguindo a vocação, Friedkin também começou a trabalhar em documentários, pegando carona nas inovações do cinema direto americano, então à toda. Com “The People vs. Paul Crump” (1962, feito em parceria com Bill Butler), onde questionava a sentença de morte contra um homem negro suspeito de homicídio, o iniciante conquistou as manchetes nacionais, mobilizando a opinião pública a favor do acusado. Agora notório, Friedkin mergulharia full-time na ficção.

Só entre 1967, ano em que estreou com “Good Times”, outro pastiche de Os Reis do Iê-Iê-Iê estrelando Sonny & Cher, a 1970, quando lançou “Os Rapazes da Banda”, hoje mais notório pela temática gay, Friedkin emplacou quatro longas-metragens, todos bem-trabalhados, ousados, pretensiosos – e esquecíveis. Tirando, talvez, “A Festa de Aniversário” (1968), tensa adaptação do dramaturgo Harold Pinter, Friedkin adota nesses filmes todos os maneirismos típicos da New Hollywood, pretensamente européia: elipses, trama difusa, preciosismos de câmera, tentativas de flertar com surrealismo de Fellini, o subjetivismo de Antonioni, o existencialismo de Bergman e outros “ismos” que os jovens da nova onda colecionavam como figurinhas. Para todos os efeitos, William Friedkin, em 1970, era um diretor “de arte” – o que equivalia a dizer que seus filmes eram “túmulos” de bilheteria, restritos a intelectuais e estudantes de cinema. Confuso e deprimido quanto a seus rumos, o diretor cogitou abandonar o cinema, mas seu encontro com um nome capital da “Old Hollywood” o colocaria de novo nos trilhos.

Enfant terrible da nova ordem: de Operação França (1971) a O Comboio do Medo (1977)

No início da década de 1970, Friedkin viveu um rápido romance com Kitty Hawks, filha do diretor Howard Hawks, de “Terra dos Faraós” (1955) e “Onde Começa o Inferno” (1959). Num almoço em família, o lendário diretor menosprezou as pretensões dos Rapazes e da Nova Hollywood como um todo, e cantou a pedra que faria a carreira de Friedkin dar o necessário giro: “Sempre que eu fiz um filme sem essas bobagens, só com mocinhos e vilões, eu tive sucesso”. As palavras calaram fundo no jovem diretor, e seu projeto seguinte seria a negação de todos os fetiches europeizantes do início.

“Operação França” (1971) seria nada menos que uma reinvenção. Lá se vão os cacoetes de artista “euroamericano”, as firulas, o subjetivismo, o psicologismo forçado. Entram em cena um novo estilo de filmar: dinâmico, nervoso, resultado da experiência documental do diretor e uma abordagem direta da trama e dos personagens. Jimmy “Popeye” Doyle (Gene Hackman) é um detetive brilhante, mas impulsivo, truculento e arrogante. Ao lado do parceiro, Cloudy (Roy Scheider), ele investiga as movimentações de um criminoso francês (Fernando Rey) e seus comparsas numa transação continental de drogas. Tal como “O Poderoso Chefão”, “M.A.S.H.”, “Easy Rider” e outras joias da época, “Operação França” propunha a reformulação completa de um gênero – no caso, o policial –, dotando-o de densidade moral e realismo sombrio, à altura do esfacelamento de valores da era Nixon. Nunca havia se visto antes, por exemplo, um policial matar um oponente desarmado, como Doyle o fazia na sequência culminante da obra. Não por acaso, Operação foi um sucesso retumbante, colecionando oito Oscars, incluindo Filme e Diretor, e colocando o nome de Friedkin no rol dos grandes. O enfant terrible da Nova Hollywood, conhecido pelo temperamento irascível e a inteligência aguda, começava a dar as cartas.


Como superar “Operação França”? Depois de recriar o policial à sua maneira, Friedkin decidiu investir mais vez num filme de gênero. O mais desprezado deles, por sinal. Leitor, como todo mundo em 1973, do romance “O Exorcista”, de William Peter Blatty, o agora poderoso diretor angariou para si os direitos sobre a filmagem da obra. Mais uma vez, porém, as chances estavam contra – com um orçamento de superprodução, estourado ao ponto da megalomania, o cineasta precisaria de um sucesso massivo para justificar o filme. Mas não só: ali estava o livro do momento, a nova galinha dos ovos de ouro da indústria, e Hollywood não hesitaria em moldar o material de William às demandas do “grande público”, segundo eles mesmos. Usando diversas estratégias para driblar os executivos – de empregar uma montadora iniciante à demissão em massa de assistentes –, o diretor passaria quase um ano filmando e montando o material, no limite do perfeccionismo.

O esforço valeu: “O Exorcista” (1973) foi mais um petardo, justamente considerado o melhor e mais apavorante filme de terror de todos os tempos. Sequências como a de Regan (Linda Blair) se masturbando com o crucifixo, o spiderwalk ou o embate final entre o demônio e o padre Karras (Jason Miller) fazem parte de qualquer antologia do gênero, e não perderam um milímetro sequer da capacidade de chocar. Sendo o terror, naturalmente, um filão desprezado pela intelligentsia do cinema, “O Exorcista” conseguiu outra marca notável, sendo o primeiro thriller indicado a Melhor Filme, além de acumular outras nove indicações e vencer duas (Roteiro Adaptado e Mixagem de Som). Nada parecia capaz de deter William Friedkin. O que o gênio indiscutível do diretor nos traria desta vez?


Para ele, uma longa, supliciante, interminável queda. Para a maioria de nós, que ignorou o estupendo “O Comboio do Medo” (1977), uma existência mais pobre. E, para a minoria que assistiu e adorou o filme, o triste enterro de uma obra-prima, além do asfixiamento de um dos talentos mais fortes de sua geração. Eis o saldo da experiência de filmar “Comboio”.

Em seu livro “Easy Riders, Raging Bulls (facilmente encontrável no Brasil, em excelente tradução de Ana Maria Bahiana), o historiador do cinema Peter Biskind conclui que boa parte da produção de Friedkin nos anos 1970 nasceu do ímpeto de competir com Francis Ford Coppola e Peter Bogdanovich, os dois colegas de geração que ele mais respeitava. Se Francis partiu para viver uma aventura quixotesca nas Filipinas (que resultaria, em 1979, no magnífico “Apocalypse Now”), então Friedkin também teria de achar um projeto igualmente insano para chamar de seu. O mote? Uma refilmagem do clássico de Clouzot, que tanto marcou o americano na juventude: “O Salário do Medo”. A história de quatro exilados que dirigem caminhões com nitroglicerina para uma companhia petroleira aprofundaria a reflexão do francês sobre o desespero humano e a pequenez diante da natureza e do acaso, para abraçar também desolados vaticínios sobre o capitalismo e a escravidão dos países pequenos por seus maiores.

Com um elenco internacional renomado – Paco Rabal, que fez “Viridiana” (1961) e “A Bela da Tarde” (1967) com Luis Buñuel; Amidou, estrela de boa parte dos filmes de Claude Lelouch –, mais Roy Scheider, a obra era demais para o público: a falta de heróis, o volume incomum de diálogos em outras línguas, o tom pesaroso e tenso, mas, principalmente, segundo Friedkin, a falta de um astro americano de peso, derrubaram o filme.

Tudo, hoje, é mero detalhe, diante do que ficou: uma das produções mais singulares e arrebatadoras da Nova Hollywood, verdadeiro testamento da capacidade cinematográfica de William Friedkin, além de um delírio visual como poucas vezes o cinema, como um todo – “Fitzcarraldo”? “Apocalypse Now”? – seria capaz de reproduzir. Sequências como a da travessia da ponte de madeira, ou o deserto de Bisti, com suas paisagens lunares, ficarão para sempre na lembrança de quem viu.

Desnecessário dizer que o fracasso devastou Friedkin. O altíssimo custo da produção, mais o investimento emocional e até físico do diretor – ele contraiu malária durante as filmagens na República Dominicana, a locação escolhida, chegando a perder 23 quilos – conduziram o cineasta a uma trajetória errática pelas décadas seguintes, e seu temperamento raivoso e intimidador pouco fariam para melhorar a situação.

Declínio, queda e (esporádica) redenção: de 1978 até hoje

É um consenso não declarado que a carreira posterior de William Friedkin, somada, não chega aos pés de suas três obras-primas setentistas. De fato, ante filmes como “Um Golpe Muito Louco” (1978), comédia farsesca incrivelmente desambiciosa, o cosplay de O Exorcista em “A Árvore da Maldição” (1990), ou o drama de guerra incomodamente xenófobo “Regras do Jogo” (2000), quase se poderia acreditar. Mas há pérolas esporádicas, que mostram que ainda vale a pena, em pleno 2015, torcer por mais trabalhos do criador de “Operação França”.

É o caso de dar uma chance, por exemplo, a “Parceiros da Noite” (1980). O filme, que deveria marcar a volta de Friedkin ao top of the game, trazia ninguém menos que Al Pacino (da série “O Poderoso Chefão”) e pegava carona num tema incendiário: a permissividade do estilo de vida gay nos anos pré-Aids. Infelizmente, as ambiguidades do roteiro, grandes demais para um filme de “grande público”, mais os protestos da comunidade LGBT, acabariam afastando qualquer chance de sucesso comercial. Olhando em retrospecto, porém, o filme é Friedkin da grande safra: tenso, provocador e incômodo em sua exposição da maldade latente do ser humano.

Outro triunfo se seguiria em 1985: “Viver e Morrer em Los Angeles”. Revisitando, aqui, o mundo amoral e violento da polícia de “Operação França”, o diretor atualiza vários de seus temas, construindo uma trama densa e tenuemente controlada, que explode, ao fim, numa catarse arrasadora. Sem exagero, um dos maiores filmes policiais da década de 1980, período bastante pródigo no gênero. Outros bons trabalhos, mas de impacto reduzido, se seguiriam, como “Síndrome do Mal” (1987) e “Jade” (1995), o último com a belíssima Linda Fiorentino à frente. Mas o melhor Friedkin, desde os gloriosos anos 1970, se encontra mesmos em seus dois filmes mais recentes.

“Possuídos” (2006) e “Killer Joe: Matador de Aluguel” (2011) são obras de um vigor raro para qualquer cineasta. Despudoradas, meticulosas, quase diabólicas no teor de provocação – lá vêm a mesma metáfora e o mesmo adjetivo, tão caros ao diretor –, as fitas mostram o que pode ser um filme de William Friedkin quando este se dispõe a fazê-los.

Trazendo na bagagem o acúmulo das experiências, boas e ruins, que moldaram o cineasta ao longo dos últimos 38 anos, “Killer Joe” e “Possuídos” atestam a capacidade de sobrevivência e reinvenção do diretor, mesmo em idade bastante avançada. Ambas as histórias analisam o tema da loucura, a primeira sob o prisma da solitária Agnes (Ashley Judd), a segunda pelo da bizarra família que vem ao encontro de Joe (Matthew McConaughey), propondo-lhe um serviço sujo.

Indo por caminhos imprevisíveis – a sequência do frango em Joe é uma das mais insólitas dos últimos tempos –, construindo clímax de tensão insuportável, ambos os filmes estão entre os melhores da produção americana recente, e fazem jus à biografia de um dos maiores cineastas americanos, de estatura e reputação – agora sim – firmemente inscritos na história dessa arte. Depois de décadas sem que seus admiradores tivessem razões para aguardar um novo filme seu, William Friedkin está de volta, e a inteligência mais sombria, que não é menos inteligência, só tem a agradecer.

Rumores dão conta, inclusive, de que ele estaria trabalhando num novo projeto com William Blatty, seu parceiro no soberbo “Exorcista”. Enquanto mais notícias (quando?) não chegam, (re)descubra esses cinco – França, Exorcista, Comboio, Possuídos e Joe – e ateste por si mesmo a beleza louca e furiosa dessa trajetória.