Após um hiato de quase dez anos, a diretora Lucrecia Martel retoma sua produção com Zama (idem, 2017), um fantasmagórico drama de época passado na Amazônia. Baseado no romance de Antonio Di Benedetto lançado nos anos 1950, a trama apresenta o personagem-título, Dom Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho), um corregedor a serviço da coroa espanhola no século XVIII obcecado com a expectativa de “voltar à civilização” – e sendo frustrado a todo momento.

Com Zama, Martel consegue trazer todo o senso de estranhamento que caracteriza seus filmes ao ambiente no qual ele se passa, o qual permanece indefinido por boa parte do tempo. Nesse sentido, ela acaba dialogando com os filmes de Werner Herzog que tem na Amazônia o seu cenário, como Aguirre, a cólera dos deuses (Aguirre der Zorn Gottes, 1972) e Fitzcarraldo (idem, 1982), além das próprias colocações do diretor alemão sobre a relação, ou melhor, conflito, entre homem e natureza, expostas no documentário Burden of Dreams (Les Blank, 1982).

UM FILME DE INCÔMODOS

Não que Zama emule conscientemente algo desses filmes, posto que a diretora argentina desenvolve um cinema autoral de marcas bem características. Porém, é difícil não ver como essas obras tem em comum a noção de um outro (o europeu) perdido num universo de lógica própria, o qual ele tenta moldar e burocratizar, mas que resiste impiedosamente, criando um senso de alienação ao “homem civilizado”. Trata-se de um filme de incômodos, no qual o ritmo arrastado e certo desconforto ao assisti-lo fazem parte do pacote, mas que reverbera poderoso após a sessão.

A fala de Luciana Piñares de Luenga (Lola Dueñas), um dos interesses carnais nunca concretizados de Zama, resume algo dessa condição. Ela afirma, em dado momento, que o tempo não passa quando não há inverno. Ali se finca a ideia de que a terra pode pertencer à força aos espanhóis, mas eles não pertencem a ela. Quando se cruza esse momento melancólico à outra sutileza delineada desde o início do filme, que é a citação à figura de um ardiloso bandido chamado Vicuña Porto, tem-se outra metáfora poderosa desse contexto histórico, que é a busca do europeu por algo que, no fim das contas, muitos poucos atingiram na América: poder, glória e riqueza.

Não por acaso, o tal Vicuña Porto é praticamente um fantasma em Zama. Seus feitos são exagerados, engrandecidos, vistos igualmente com temor e admiração. A cada novo posto, há alguém que hipoteticamente o capturou ou matou – e, no entanto, novos crimes sempre continuam sendo atribuídos a ele, de maneira que o personagem é quase um Eldorado da bandidagem. Mas não falemos mais nada sobre Vicuña Porto para não estragar surpresas do filme…

CAMPO E EXTRACAMPO

Nesse cenário, a atuação intimista de Cacho se destaca. Ele trabalha de maneira sutil tais conflitos, seja num olhar que deixa escapar a frustração de Zama pela decadência cada vez mais gritante de sua condição, seja na dureza que expõe especialmente no terço final do filme. No não dito, o ator apresenta total domínio do desespero crescente de Zama para partir da América que o destrói psicologicamente e, depois, fisicamente.

Tudo isso se encaixa como uma luva à direção de arte da brasileira Renata Pinheiro (que já dirigiu o interessante Amor, Plástico e Barulho). Ela apresenta muito bem o estranhamento do estrangeiro e seu óbvio não pertencimento ao lugar quanto mais o homem branco domina o espaço com suas construções, móveis, vestimentas e costumes. As perucas mal alocadas na cabeça, os figurinos restritos e os móveis gastos despontam quase como personagens no universo coordenado por Martel.

Vale ressaltar que Pinheiro consegue com bastante domínio delinear uma unidade em relação à direção de arte quando Zama adentra o coração da selva. Com elementos cada vez mais mínimos se aliando mais explicitamente ao trabalho do figurinista Julio Suárez, o longa só se torna algo bem diferente por força das reviravoltas do roteiro, e não por uma discrepância na abordagem do espaço no qual se passa a trama a partir do terço final.

Como característico do cinema de Lucrecia Martel, o som desponta como um elemento essencial para a criação da atmosfera de Zama. Quando um zumbido demarca pensamentos de personagens que se perdem em divagações, ou quando a gradual diminuição no volume dos sons de fundo se une a planos mais fechados num rosto, por exemplo, somos transportados através desse elemento invisível à alienação, desespero e outros estados de espírito desses homens de maneira bastante eficiente. Na contramão dessa aparente espontaneidade, o uso da música em Zama tem um ar totalmente não natural – o que, nesse caso, é proposital.

O extracampo é, então, essencial para entendermos as dinâmicas do trabalho de som, posto que ele também trabalha com imagens mentais, ainda que de outra natureza. Com isso, Martel consegue até mesmo dar nova vida a um elemento usado não raro sem criatividade, que é o off (Padilha e seu O Mecanismo que o digam). Em Zama, o off pode, por vezes, adentrar ativamente na cena com a mesma fluidez que passa ao posto de voz de deus, mostrando ou ocultando seu autor e nos lembrando, de tempos em tempos, que o filme é uma construção, ainda que, em sua superfície, pareça uma obra fincada numa expressão bem naturalista da trama.

Outro ponto interessante dessa dinâmica é a maneira como negros e indígenas são apresentados no filme. Os primeiros são entendidos pelos europeus como meras peças de uma engrenagem, mas momentos da trama dão conta de expressar algo da complexidade e resistência de personagens como a coxa Malemba (Mariana Nunes), cujo destino Luciana insiste em querer interferir para além de seus desejos. Já os segundos são os que apresentam total integração com o espaço cobiçado, porém, detestado pelos europeus. A cena da travessia dos índios cegos e, posteriormente, quando um grupo de outra etnia ataca Zama e seus companheiros mostra bem isso – o que só intensifica os ecos da brutalidade para com os povos indígenas pela qual os espanhóis ficaram conhecidos nos registros históricos do período.

Num debate por ocasião da pré-estreia de Zama no Brasil, Martel comentou como a trama ecoa na contemporaneidade ao pontuar que “a classe média argentina […] é composta por pessoas que não se resignam em viver aqui [na América Latina]”. De fato, a mesma supervalorização dos valores (e vícios) ocidentais, o desprezo aos autóctones e minorias, e, consequentemente, a frustração de nunca pertencer nem ao lugar onde se está e nem àquele que se almeja tornam o longa o tipo de filme que não se coloca tanto em alta conta ao assisti-lo, mas que cresce na medida em que consegue fincar os pés na mente do espectador no decorrer do tempo.