Ninguém pode negar que o diretor Tim Burton é um cineasta de visão singular e assinatura e estilos muito pessoais. Basta zapear um pouco na TV e, se você encontrar um filme dele passando, na grande maioria das vezes se percebe que é um filme de Burton rapidamente. Na grande maioria… Porque também é verdade que ele teve alguns momentos como diretor de aluguel. Três momentos, na verdade: com Batman (1989), Planeta dos Macacos (2001) e Alice no País das Maravilhas (2010). Esses foram projetos de estúdio que apareceram em seu caminho, e Burton não tinha necessariamente interesse neles, mas aceitou fazê-los porque eles claramente beneficiaram a sua carreira. Um típico exemplo de “faço um pra eles, depois um pra mim”: muitos cineastas construíram carreiras longas e de sucesso em Hollywood adotando esta estratégia.

Porém, destes três filmes apenas Batman, surpreendentemente, possui o “estilo Burton”: clima sombrio, personagens esquisitos, e uma atmosfera capaz ao mesmo tempo de atrair o espectador ou de repeli-lo. Os outros dois filmes poderiam ter sido feitos por qualquer um. O caso de Alice foi até mais emblemático, porque à primeira vista, parecia que o diretor e o clássico livro de Lewis Carroll pareciam feitos um para o outro. Mesmo assim, o filme que o diretor entregou era apenas um amontoado de efeitos visuais e de direção de arte virtual, temática e esteticamente inspirado por outras obras de fantasia como O Senhor dos Anéis e Avatar (2009) – aliás, não nos esqueçamos de que uma das principais razões para o sucesso do primeiro Alice foi o fato de ele ter sido o primeiro depois de Avatar a mostrar um grande mundo fantástico criado via computação gráfica e a explorar o 3D.

E Alice no País das Maravilhas fez muito sucesso. Mesmo assim, ninguém estava clamando muito por uma continuação. Mas em Hollywood isso não importa: qualquer filme que arrecade um bilhão de dólares nas bilheterias mundiais vai ganhar uma continuação, não importa se a maioria das pessoas gostou dele ou não. É a natureza do negócio. Burton ficou confortável na sua cadeira de produtor e deu a direção ao pouco conhecido James Bobin – basicamente diretor dos filmes dos Muppets – e o resultado foi este Alice Através do Espelho. Se o primeiro já parecia sem alma, o segundo então é um Frankenstein apenas parcialmente reanimado.

Ambientado alguns anos depois do primeiro, a sequência se inicia mostrando Alice Kingsleigh (Mia Wasikowska) agora como comandante de um navio. Ela explorou o mundo e, ao voltar para Londres, enfrenta outro dilema da vida de jovem adulta. Para fugir dele, ou aprender a resolvê-lo, ela atravessa o espelho e volta ao País das Maravilhas. Porém, agora seus velhos amigos lhe alertam de um problema: o Chapeleiro Louco (Johnny Depp) está em péssimo estado e a única forma de ajudá-lo é uma viagem no tempo. O Tempo, porém, é um sujeito temperamental – vivido por Sacha Baron Cohen – e a encrenca na qual Alice se mete ao viajar no tempo vai novamente despertar a ira da Rainha de Copas (Helena Bonham Carter).

Na teoria, a viagem no tempo poderia render uma história interessante… Mas acaba sendo usada mesmo apenas como desculpa para grandes sequências de efeitos visuais, como as cenas – inegavelmente bonitas – que mostram Alice flutuando dentro da “Cronosfera” pelo oceano do tempo. Basicamente, tudo no filme é um efeito visual: de novo, é um filme de direção de arte virtual, mas que, neste caso, não escapa muito do óbvio. O Tempo mora num relógio gigante e Alice, para chegar até ele, precisa caminhar por cima dos ponteiros. Seus ajudantes são uns robôs meio esquisitos que se juntam para formar robôs maiores e mais esquisitos. Por um momento, no meio do filme, o Tempo visita o Chapeleiro e seus amigos na mesma mesa de banquete na qual ele foi apresentado no primeiro filme e imaginamos que Através do Espelho pode buscar um pouco de inspiração em De Volta para o Futuro 2 (1989). Mas isso não acontece: os personagens se limitam a fazer uns comentários engraçadinhos sobre o Tempo.

Alguns elementos visuais interessantes surgem aqui e ali – como o momento em que algumas pessoas são vistas presas dentro de um formigueiro contido num vidro. Mas basicamente, esta sequência é fiel ao visual do primeiro filme. Os visuais visam nos distrair da total falta de conexão com a história, que é simplesmente muito frágil e o filme nem se esforça para disfarçar isso: toda a confusão com o Chapeleiro, motivadora de toda a trama, é resolvida com algumas linhas de diálogo, assim como a inimizade entre outras duas personagens. O filme ainda apresenta uma sequência ambientada no mundo real no meio da projeção que não possui a menor função narrativa – pelo menos nesses minutos Andrew Scott e sua cara de maluco exercitam mais um pouco da vilania clichê pela qual o ator já está se tornando conhecido.

Além do mais, o filme tem outro grave problema: em 2010, Johnny Depp era querido pelo público e todos queriam vê-lo fazer suas macaquices nas telas. Em 2016, a maior parte do público não se importa mais com ele, e centrar a trama em ajudar o Chapeleiro simplesmente nos afasta ainda mais da história. Aqui Depp nem parece mais humano, e não é culpa da maquiagem: parece tão virtual e sem vida quanto qualquer um dos personagens em computação gráfica que dão as caras. E desta vez ele não tem direito a dancinha, ainda bem – o status dele está mesmo caindo… O resto do elenco não parece muito interessado em estar ali: Wasikowska é opaca, como quase sempre, Cohen diverte em alguns momentos e Carter e Anne Hathaway disputam para ver quem está mais caricata. Ah, este segundo Alice traz o último trabalho do já saudoso Alan Rickman como a voz do personagem Absolom. Mas há pouco Rickman para melhorar o filme.

O fato de Tim Burton não ter aceitado dirigir este segundo Alice já expõe a essência da empreitada: só mais um filme dedicado a repetir o que deu certo da primeira vez, sem inovações ou uma história boa o suficiente para justificar sua existência. Já vimos esse filme antes, e nem foi bom da primeira vez. É sintomático que Burton tenha dirigido apenas uma continuação em sua carreira: Batman: O Retorno (1992), definitivamente mais autoral e querido para o diretor do que o primeiro. É possível imaginar os subtextos sexuais, o clima de estranheza e de conto de fadas sombrio daquele filme, num projeto de super-herói como Batman, sendo feito hoje? Muito provavelmente, não.

É inegavelmente bom ver uma Alice exemplo para as meninas, comandando navios e enfrentando os problemas dos mundos real e imaginário, como uma heroína forte e imaginativa. Pena que o novo sonho dela seja apenas uma versão requentada do anterior. E Hollywood sempre confia que o espectador vai gostar de ter o mesmo sonho duas vezes.