Para quem cresceu lendo quadrinhos, rivalidades entre heróis sempre mexeram com o imaginário pessoal. Na infância, era normal nas brincadeiras com os amigos questionar qual era o melhor super-herói ou quem ganharia um duelo. Essa competição não apenas apimentava os papos, como servia para defender as preferências pessoais. Por isso, na década de 90, quando o mundo das HQs não era essa máquina de blockbuster cinematográfico atual, existiam apenas dois heróis que povoavam a imaginação: Batman e Superman.

Esse combate cinematográfico foi imaginado por muitos que liam os gibis ou assistiam ao lendário desenho animado da Liga Justiça no extinto programa da Xuxa nessa década. Por sinal, ambos os personagens tiveram grande importância (e contribuição) para a construção da realidade dos quadrinhos no cinema: Superman – O Filme (1978), de Richard Donner, foi precursor, um grande sucesso de público e crítica. Aproximadamente dez anos depois, o homem-morcego sedimentou este caminho com Batman (1989), de Tim Burton, grande sucesso de bilheteria daquele ano. Se o filme de Donner tinha o jeitão clássico e épico, o de Burton primava pelo tom autoral e artístico.

Ben Affleck em Batman vs SupermanPor isso demorou muito – mais de 25 anos – para que finalmente esse sonho “molhado” dos fãs se tornasse realidade com Batman vs Superman: A Origem da Justiça, continuação direta de O Homem de Aço (2013), também dirigido por Zack Snyder. Após toda a destruição gerada pela briga de Superman (Henry Cavill) e o General Zod (Michael Shannon) no filme-solo anterior, que ocasionou na morte de milhares de pessoas, Bruce Wayne (Ben Affleck, preciso no papel) enxerga o bom alienígena como uma ameaça para a humanidade. Em paralelo, um jovem Lex Luthor (Jesse Eisenberg, em atuação turbinada em LSD) planeja um “plano infalível” para que ambos se confrontem.

A boa notícia é que A Origem da Justiça é bem superior quando comparado com o enfadonho O Homem de Aço. Isso não tira as suas várias imperfeições e irregularidades durante suas duas horas e meia. O início ganha contornos épicos ao centrar inicialmente na origem de Wayne e mostrar o seu ponto de vista frente à destruição gerada na briga entre Superman e Zod no filme anterior. Só que, à medida que a produção caminha, vira uma verdadeira montanha-russa de emoções ambivalentes, com momentos interessantes na narrativa (tanto textual quanto visual) e outros equivocados, onde é evidente os problemas de montagem e alongamento de certas cenas – aqueles velhos excessos comuns na carreira Zack Snyder.

O diretor, juntamente com a dupla de roteiristas Chris Terrio e David Goyer, constrói com eficiência o ponto de vista do filme dentro do esqueleto do roteiro. O trio compreende que o mundo da DC é uma realidade mais romântica, que envolve mitos e deuses, onde Superman, Batman, Mulher-Maravilha, Flash e demais personagens fazem parte de uma época clássica, onde valores como honra, honestidade e justiça são elementos artísticos que caracterizam a essência dos personagens. Na produção, esse respeito é evidente, o que vai fazer a felicidade dos fãs de quadrinhos.

Henry Cavill em Batman vs Superman: A Origem da JustiçaSnyder discute esse olhar entre heróis, humanos e deuses de uma forma interessante. Consegue humanizar esses seres mitológicos mostrando suas fragilidades e inseguranças frente seus papéis no mundo. É um retrato atual de nosso mundo contemporâneo, onde deuses e heróis são na sua essência imperfeitos, conflituosos e desacreditados. Não é a toa que o Homem de Aço visto aqui ganha contornos sombrios (reparem no uniforme do herói filmado em tons dark e acinzentado), que se aproximam cada vez da introspecção de um Bruce Wayne, que, por sua vez, mostra-se mais psicótico, emocionalmente instável, próximo de uma figura demoníaca, lutando contra seus monstros interiores. Nesse ponto, o diretor acerta na construção psicológica do personagem ao abordar os assustadores sonhos de Wayne, que ganham uma concepção visual fascinante e aterrorizante por parte da direção de arte.

Nesse quesito, o roteiro da dupla oferece diversas tramas e conflitos e consegue cumprir em parte com algumas delas. Acerta em desenvolver o enredo conspiratório e sua trama de bastidores, onde os arcos dramáticos individuais de Batman e Superman funcionam muito bem, o que dá escopo sólido ao clima de tensão iminente de combate entre eles. Esses fatores emocionais oferecidos pelo texto aparecem – ainda que timidamente – em momentos pontuais do longa e ajudam o público a se envolver nos eventos pré-batalha. Além disso, toda a trama voltada para os eventos da formação da Liga da Justiça facilita o elo de conexão emocional, principalmente os easter eggs do mundo DC, que são deixados durante o longa-metragem.

Mas como já sinalizado nesta crítica, o filme é de um ritmo desconjuntado, de várias oscilações na narrativa. O roteiro apresenta no seu esqueleto várias ideias boas que não são desenvolvidas de forma satisfatória. Os vários erros cometidos por Snyder aparecem aqui, mesmo em doses menores quando comparados ao longa anterior. Nesse ponto, sua direção reflete toda ambivalência e contradição do filme: tem seus momentos bacanas, mas seus erros grosseiros. É o famoso 8 ou 80, que nunca encontra um denominador comum durante todo o filme.

Gal Gadot em Batman vs Superman: A Origem da JustiçaSe por um lado, o diretor “visionário” acerta na composição da imagem icônica dos seus heróis – o plano em que ambos se enfrentam pela primeira é muito bonito de se ver, assim como a cena em que Luthor faz Superman se ajoelhar perante a ele é um plano-detalhe bem encenado –, ele demonstra uma mão pesadíssima em dar o toque emocional, apelando quando necessário para diálogos expositivos. As sequências de ação passam uma impressão inicial de serem bem encenadas visualmente, mas, em um olhar aprofundado, percebe-se que os cortes de câmera e a montagem picotada deixam a sensação de um caos visual que piora ainda mais quando assistido no formato de 3D – a paleta da fotografia escura interfere na compreensão e identificação das situações.

O próprio combate no ato final evidencia esses problemas visuais, e não deixa de ser frustrante acompanharmos uma briga artificial, toda encenada em um digital genérico. Em outras palavras, ainda que goste do combate entre Batman e Superman, fica a impressão que, no restante geral, toda destruição é meramente visual, sem uma significação emocional, onde a desconexão entre ação e história dos personagens deixa claro suas inconsistências.

Jesse Eisenberg em Batman vs Superman: A Origem da JustiçaHenry Cavill explora bem a humanidade do Homem de Aço, mas sofre porque o roteiro praticamente dá preferência ao Batman/Bruce Wayne. O mesmo acontece com Amy Adams com a sua Lois Lane, que não tem a chance de mostrar a forte personalidade da sua personagem como acontecia com Margot Kidder no clássico filme de 1978. O melhor dos personagens do filme anterior é Diane Lane, que se destaca nas poucas cenas em que aparece. Dos novos personagens, os destaques são Affleck e Gadot. A escolha de um Batman mais velho claramente perto de O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, cai como uma luva ao ator, que oferece uma densidade madura ao personagem. Já Gadot destaca-se pela forte personalidade e sex appeal quando aparece (e uma pena que sua cena vestida como a personagem, vista em um dos trailers, estrague uma das surpresas do filme). Por fim, o Lex Luthor de Eisenberg é bem defendido pelo ator, que parece se inspirar na vilania do Coringa para compor o seu personagem. Pena que essa defesa não ganhe boas pinceladas pelo roteiro, principalmente no ato final.

No geral, Batman vs Superman: A Origem da Justiça não chega a ser um filme ruim. Tem boas ideias e imagens interessantes, mas apresenta uma incoerência estrutural entre texto e cenas. É estranho ver que Snyder acerta mais nos bastidores políticos da batalha do que essencialmente na ação, onde ele é considerado por muitos um perito. Talvez o maior derrotado seja o próprio Superman, que é engolido no seu próprio filme pelo rival. Não é à toa que, mesmo passados 38 anos, o clássico de Richard Donner continue o melhor filme voltado ao personagem. Poderia ser pior? Sim, pelo que indicava o trailer. Pena que o resultado final mostre um encontro de heróis cheio de boas intenções, mas emocionalmente vazio na essência.

Como diria o grande Nelson Rodrigues: bonitinho, mas ordinário.

VIDEOCAST CINE SET (SEM SPOILERS):