Em certo momento de “Blade Runner – O Caçador de Androides”, filme dirigido por Ridley Scott, o replicante Roy Batty (um personagem interessantíssimo interpretado por um inspirado Rutger Hauer) faz um discurso no qual relata uma experiência. Este momento ficou marcado nos anais do cinema e até hoje é bastante lembrado pelos amantes da sétima arte: “Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”. A frase é poética, mas o fator tempo, além de ser um elemento determinante (e vital) para os replicantes no âmbito da historia, mostrou-se fora do filme, um fator primordial em corrigir algumas lacunas abertas deixadas pela pouca receptividade do público e da crítica quando o filme foi lançado em 1982.

Harrison Ford em cena de Blade Runner - O Caçador de AndroidesO tempo, por sinal, serve para ilustrar que trabalhos inovadores necessitam de um intervalo maior para serem apreciados pelo grande público. Os anos e as décadas seguintes mostraram que o filme dirigido por Ridley Scott, de um fracasso comercial tornou-se uma obra cult, que exerce, até hoje, uma força “messiânica” não apenas no imaginário cinéfilo, como é modelo de referência quando se debate Ficção-Científica no cinema, algo que não acontecia desde 2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick.

Adaptado do (interessante) conto de Phillip K. Dick “Do Androids Dream Of Eletric Sheep”, Blade Runner mostra uma Los Angeles distópica, suja e sombria, onde grande parte dos humanos migrou para colônias espaciais fora do planeta. Nesta conjuntura, Deckard (Ford em uma atuação discretíssima), é um policial fora de atividade, obrigado a retornar para o serviço para caçar androides conhecidos como Replicantes – representações perfeitas dos humanos, inclusive na possibilidade de despertar sentimentos – que fugiram de uma colônia e se refugiaram em Los Angeles.

O que chama atenção é que, mesmo passados 33 anos desde o seu lançamento, o futuro idealizado em Blade Runner continua visualmente impressionante, sem jamais soar datado. É o típico filme que sobreviveu muito bem ao tempo, graças à experiência visual proporcionada ao espectador. A cena de abertura, filmada em um tom sensorial hipnótico – uma referência direta ao clássico “Metropólis” – já serve como parâmetro para que Ridley Scott apresente uma fascinante atmosfera noir cheia de mistérios, em uma Terra estranha que funciona como uma alegoria de alienação e gente esquisita.

A Los Angeles delineada pelo cineasta é marcada por um tom cinzento, chuvoso e apático, onde as únicas luzes funcionam não como esperança para dias melhores e sim como elementos intrusivos de apartamentos vazios, sem qualquer vivacidade e desprovidos de identidade. Neste sentido não se pode deixar de elogiar a ótima concepção visual do filme. Da deslumbrante direção de arte – quase um personagem vivo, um verdadeiro protagonista – passando pela fotografia com paletas escuras e azuladas que traduz com eficiência o lado sombrio e depressivo da cidade. Fechando a trinca dos aspectos técnicos, temos a icônica trilha sonora de Vangelis que vai do suspense à melancolia com uma profundidade e habilidade rara de se ver.

Os Replicantes em Blade Runner - O Caçador de AndroidesÉ claro que reduzir Blade Runner apenas a sua abordagem visual seria desmerecer o trabalho de Scott. Ainda que apresente um ritmo lento, é nítido que o cineasta consegue desenvolver um tom investigativo interessante, sabendo imprimir a adrenalina em momentos-chave do enredo, com um ótimo timing no uso da montagem na sequência mais empolgante do filme (a perseguição de Zhora nas ruas de Los Angeles). A construção desta cena é pautada por uma ação que concilia com eficiência tanto o uso de cortes dinâmicos quanto da câmera lenta para mostrar o impacto do ataque – e que ganha tons dramáticos e poéticos graças à triste melodia encenada por Vangelis.

O roteiro da dupla Hampton Francher e David Webb Peoples é repleto de ambiguidades, simbolismos e discussões existenciais. A primeira característica é evidente na excepcional conversa entre Roy e Tyrell (Joe Turkel), que retrata a ambivalente relação entre criador e criatura. Já a simbologia é observada nas diversas alegorias de animais pelo filme – corujas, unicórnios e cobras são presenças constantes nas metáforas que o filme oferece.

As reflexões existenciais do roteiro também geram debates interessantes: o que é mais humano, um sujeito insensível como Deckard ou o androide Batty, que dá valor à vida e busca a sua finitude? Scott, por sua vez, não deixa de fazer uma profunda análise anticapitalista, uma verdadeira ironia em relação ao sonho americano que por sua vez funciona com uma interessante metáfora da Era Reagan, onde as desigualdades sociais americanas ficaram evidentes.

Se Harrison Ford parece não estar 100% envolvido no seu personagem – as suas relações com o diretor durante as filmagens foram complicadas – cabe a um inspirado Rutger Hauer simplesmente roubar todas as cenas na qual aparece com uma atuação hipnotizante. Fechando o elenco, ainda temos as belas Sean Young e Daryl Hannah, ambas em início de carreira.

No geral, a complexidade de Blade Runner não envolve apenas seu roteiro, como também todas as questões de bastidores relacionadas a produção e as diferentes versões do filme lançadas de 82 até hoje. No fundo, é uma boa reflexão sobre a natureza humana que por detrás de toda sua complexidade filosófica, esconde um simples questionamento: Afinal quem vive? Talvez no fundo, a resposta para este questionamento é a capacidade que nós seres humanos temos de criar memórias e sentimentos.