Com os avanços graduais na realização de curtas e longas-metragens de ficção no Amazonas, como por exemplo, a abertura do curso de produção audiovisual da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e o aumento de filmes produzidos no estado, a questão que surge no campo cênico é a seguinte: nossos atores estão preparados para fazer cinema?
É certo dizer que o cinema do Amazonas, em termos de número de produções e consolidação de mercado, ainda engatinha. Não é de se espantar, portanto, que o estado não tenha um star system pra chamar de seu: questões como formação, mercado e preparação são problemas que se refletem diretamente no circuito dos atores das produções locais.
Do palco para as telas
Na falta de uma formação específica ou de um mercado consolidado, o grande celeiro de atuações ao qual a sétima arte recorre no Amazonas são os cursos e coletivos de teatro.
Nesse sentido, o exemplo mais claro é o curso de Teatro da UEA, oferecido pela instituição desde 2010. Porém, como o próprio nome sugere, o foco do curso é mesmo a produção teatral em suas diferentes vertentes – e, por isso, sua matriz curricular não contempla a produção audiovisual. A interpretação focada em cinema vai encontrar espaço na universidade em outro curso, justamente o de Tecnologia em Produção Audiovisual, numa disciplina do segundo período.
Outras formações possíveis surgem, então, em grupos de teatro. Um deles é a companhia e produtora Artcena, que oferece um curso livre de interpretação em TV e cinema de quatro meses, a fim de preparar atores para atuarem em frente às câmeras, trabalhando teoria e prática. Outro grupo que propõe iniciativas de formação, ainda que não especificamente voltadas para o cinema, é o Ateliê 23.
Logo, a migração do teatro para as telas é um ponto em evidência, mas claro que é importante notar, como qualquer pessoa que já assistiu a uma peça e a um filme, que os estilos de atuação nessas artes são deveras distintos.
Esse é um ponto ressaltado pelo realizador Zeudi Souza, responsável por produções como “Perdido” e o futuro “No Rio das Borboletas”, além de possuir suas próprias experiências no teatro. “Cada área tem sua forma e modelo, e isso é muito claro. Desde que o cinema foi se configurando como arte, houve uma preocupação com os atores, e naturalmente foi um longo processo para o cinema ter sua linguagem de atuação. Nos Estados Unidos, grandes escolas de atuação surgiram com estudos mais sofisticados para se pensar o ator de cinema, e nomes como Lee Strasberg, Meisner e Stella Adler pautam o processo para o ator de cinema, que pede e exige mais organicidade e sofisticação no modo de atuar”, afirma Zeudi.
Outro que segue nesse rumo é Antônio Carlos Jr., que trabalha tanto como diretor quanto ator, e também reforça as diferenças dos processos. “O teatro trabalha o uso do corpo e voz na sua potência máxima, mesmo porque, como dizemos no meio, até a velhinha surda na última fileira tem que te escutar. Por sua vez, o cinema é a arte do mínimo, que privilegia a organicidade e a naturalidade e em que toda a questão da expansão tem que ser trabalhada para ser minimizada”, comenta.
“Como atuar”
Antônio Carlos também destaca que, mesmo que alguns realizadores ainda prefiram que seus atores desenvolvam o personagem de maneira solitária, em seus dois filmes como diretor, ele trabalhou com um profissional de preparação de elenco. “[Esse trabalho] suga o ator de forma muita intensa e orgânica. Ele vai até o limite da atuação. Creio que auxiliar seja a palavra-chave. O trabalho de construção do personagem é do ator; o que o preparador faz é dar elementos que o ajudem nessa construção”, explica.
Antônio, no entanto, vê a prática ainda em estágio muito básico no Estado. “No geral, ainda temos muita dificuldade de preparar aqui. Muitos diretores têm dificuldade de construir personagens, então a gente tem muitos trabalhos ruins. Você tem até atores bons, mas faltava tempo ali para que a construção deles fosse melhor”, disse.
Para Zeudi, a preparação também é um processo importante muito esquecido. “Em Manaus, não se tem o costume de preparar atores, e preparação não é ensaio: se, no teatro, os encontros acontecem para decorar falas, a preparação do ator para o cinema busca outro viés, que é fazê-lo ficar disponível para o diretor, entender a atmosfera do filme e, a partir disso, desconstruir para construir a personagem. Sinto que ainda falta muito; se de um lado demos saltos em qualidade técnica, ainda deixamos a desejar em pensar o ator. Penso que todo e qualquer processo é valido, mas a partir do momento em que se ligam as câmeras, as pessoas mais importantes no set são os atores”, afirma.
O próprio Zeudi já participou como preparador de elenco de produções locais, como “Sandrine”, de Elen Linth e Leandro Rodrigues, e o ainda inédito “E Se Essa Estrada Não Levar a Lugar Nenhum”, de Rafael Ramos. A atriz Jéssica Amorim, que participou deste último, comenta a mudança que sentiu com a vivência do processo:
“Ficamos ali durante um pouco mais de um mês realizando um intenso trabalho, a partir de tantos exercícios, descobertas e conflitos, que fica difícil se passar ileso. Hoje consigo entender com mais clareza que esta preparação pode até não ter sido a idealizada pelo Rafael ou mesmo pelo Zeudi, mas acredito que foi uma experiência realmente instigante no sentido de se entender o papel do ator para um trabalho como esse, e sobre a dificuldade de exercê-lo. Fica claro o tamanho da nossa responsabilidade e a necessidade de se manter humilde para continuar estudando, aprendendo e se aperfeiçoando”.
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Problemas e alternativas
Susy Freitas, crítica de cinema, credita essa dificuldade no processo de preparação e os consequentes resultados vistos nas produções a outro fator. “Há o amplo uso de não-atores [no cinema local], que nem sempre recebem a devida atenção merecida no processo de direção e, muito menos, durante a edição, que poderia ajudar a resolver alguns problemas”, afirma.
Outro realizador local, Leonardo Mancini – que já teve suas próprias experiências de atuação em filmes como “Et Set Era” e “Germes” –, também segue a mesma linha. “Pode até ser um erro dizer isso, mas não ligo muito pra formação. Às vezes, eu prefiro trabalhar com gente que conheço e que acho que pode render. A questão é que não existe mau ator, existe mau diretor. Tanto como diretor como quando atuei, percebi que o diálogo é um processo fundamental. O cara tem que ser muito ruim para ser um mau ator e o diretor tem que estar muito desgarrado pra deixar isso acontecer”, opina Mancini.
No meio de tudo isso, está uma desconexão entre as cenas teatral e audiovisual, que dificulta o real intercâmbio de processos e ideias, algo percebido tanto por Antônio Carlos Jr. quanto por Susy e Mancini, que destaca que há bons atores em Manaus; o problema é saber quem são e como chegar a eles.
Gustavo Soranz, professor e pesquisador da área audiovisual, comenta a questão com um tom de esperança: “Acho que historicamente há uma aproximação tímida entre o pessoal do teatro e o pessoal do cinema que, felizmente, vem se intensificando nos últimos anos, o que tem contribuído para filmes com atuação e dramaturgia mais definidas. Nos últimos três anos ou pouco mais do que isso, vimos surgir grupos ligados tanto a cinema como a teatro, promovendo um diálogo interessante entre essas expressões dramatúrgicas, assim como há diálogos interessantes entre o pessoal da dança e do cinema”.
Segundo Susy, é perceptível uma atenção maior dada à preparação dos atores nos últimos anos. “Nem sempre se percebe esse resultado na tela, mas é uma iniciativa interessante dentro do contexto local, que hoje busca mais atenção aos elementos técnicos do fazer cinema”, pondera.
O papel da formação
A formação continua sendo de suma importância para o desenvolvimento técnico da cena audiovisual, e Gustavo crê que o ambiente acadêmico, aliado a “uma cultura em torno do teatro e do cinema, que exige estudo, reflexão, experiências, mostras, festivais, etc” deve proporcionar um grande salto ao cinema local em termos de qualidade. Antônio também destaca a necessidade da criação de espaços fora da academia, como workshops de atuação, para incentivar a busca por esse aprimoramento. “Você vê vários de parte técnica, como roteiro e fotografia, mas poucos de interpretação pra cinema. Eu não me lembro de nenhum recentemente”, desabafou.
Para Mancini, outro obstáculo a ser superado é o próprio mercado. “Temos bons atores em Manaus, mas falta uma estrutura mercadológica que lhes permita melhorar mais e integrá-los com quem produz. Eu sempre procuro por bons atores e, às vezes, é difícil de encontrar. Acho que soluções como um diretório virtual que possa reunir esses nomes são uma boa, como acontece em Los Angeles”, afirma o realizador. “Além disso, vale lembrar que o diálogo com o diretor e a pesquisa do próprio ator no processo são fundamentais pra garantir um bom resultado. Se eu percebo que não vai funcionar com algum ator, já não perco tempo”.
Como Mancini aponta, o empenho dos próprios atores e realizadores é uma matéria-prima sem a qual a atuação no cinema local não irá para frente, mas que, se presente, consegue transpor as dificuldades que a cena ainda apresenta hoje. Susy conclui: “Cursos [específicos para atuação para cinema], mesmo que de curta duração, inexistem em Manaus, de maneira que a saída mais simples seria através da leitura e da experimentação mesmo, sendo que, mesmo as publicações sobre o tema em português, são escassas. Mas se o artista tem interesse em superar esses limites, não é uma missão impossível”.
(colaborou Gabriel Oliveira)