Para se compreender totalmente Dois Caras Legais, é preciso antes conhecer ou relembrar quem é o seu diretor/roteirista, Shane Black. Nos anos 1980 Black, após alguns trabalhos como ator e escritor, vendeu seu primeiro roteiro em Hollywood e ficou rico: era o do filme Máquina Mortífera (1987), com o qual Black praticamente definiu para aquela geração o conceito de buddy film, aquela história conduzida por dois personagens (quase sempre homens) de personalidades bem diferentes e que extrai humor e drama dos conflitos entre eles. Durante o fim dos anos 1980 e começo dos 1990, Black foi um dos roteiristas mais bem sucedidos (e bem pagos) de Hollywood. Até vir o fracasso do seu projeto Despertar de um Pesadelo (1996), e então Hollywood percebeu que não precisava realmente pagar tanto dinheiro para roteiristas, encerrando a era dos escritores que provocavam espanto nos anos 1990 ganhando milhões por um único trabalho.

Por um tempo Black ficou no ostracismo, mas tinha uma carta na manga: ninguém consegue escrever buddy films como ele. Black se reuniu com seu amigo Robert Downey Jr. – outro que na época também estava precisando de um renascimento – e fizeram juntos Beijos e Tiros (2005), que marcou a estreia do outrora “roteirista de ouro” de Hollywood na função de diretor. Beijos e Tiros foi elogiado e virou um cult graças à parceria entre o ator fracassado de Downey Jr. e o detetive gay de Val Kilmer. O culto levou a uma reunião entre Black e o intérprete de Tony Stark no sucesso Homem de Ferro 3 (2013) para o Marvel Studios.

Dois Caras Legais é o novo buddy film de Shane Black. Traz todos os ingredientes que fizeram a fama de Black e ainda o tornam uma figura cultuada: amor pelas histórias noir, literatura pulp e cinema; dois protagonistas bem diferentes um do outro e que precisam trabalhar juntos; a cidade de Los Angeles; e humor. Até começa meio parecido com Máquina Mortífera, com a morte de uma mulher sexy. O diferencial é que a trama agora se passa em 1977: talvez não por acaso, o ano em que Hollywood iria começar a mudança do cinema sombrio e vigoroso da geração dos Scorseses, DePalmas e Coppolas, para o domínio dos blockbusters graças a Star Wars: Uma Nova Esperança. E, no fim das contas, não foi essa mudança que tornou a carreira de Black possível?

DoisCarasLegais_NiceGuysNa trama, a mulher morta da cena inicial é uma atriz pornô, e seu falecimento é o ponto de partida numa trama maluca que envolve pornografia, corrupção, hippies e os dois caras do título. Jackson Healy, vivido por Russell Crowe, é um detetive brutamontes que vive de dar pancadas nas pessoas por dinheiro. O outro cara é Holland March, interpretado por Ryan Gosling. March é um detetive ganancioso, atrapalhado e chegado a uma bebida, mas que também possui uma filha adorável e inteligente, Holly (Angourie Rice). Healy quebra o braço de March quando se conhecem e este solta uns gritinhos agudos de dor, mas depois se unem na busca pela misteriosa Amelia (Margaret Qualley), relacionada de alguma forma às mortes no circuito pornô de Hollywood e…

Bem, se você já viu um bom número de filmes noir na sua vida, então sabe que a trama é o que menos importa, e Black segue a cartilha do noir à risca. A trama é mera desculpa para que conheçamos os personagens e seu mundo louco e de excessos, e para colocá-los em situações inusitadas. O que Black traz é seu toque irônico e paródico e seu talento para criar situações cômicas e boas cenas de ação.

Como geralmente ocorre num filme do diretor/roteirista, é um filme bem masculino, com dois retratos diferentes de masculinidade. Crowe assume a barriga e se diverte, embora esteja claramente interpretando o personagem mais sério da dupla. Pois Gosling, mais uma vez, demonstra seu talento com uma atuação engraçadíssima, com momentos de comédia física – suas trapalhadas durante a conversa com Healy, na qual seu personagem está sentado no vaso sanitário – e até uma cena digna de Didi Mocó ou Chapolim Colorado, o divertido momento no qual March descobre um cadáver.

Apesar da testosterona, é curioso que o único farol de lucidez em todo o filme venha justamente da personagem Holly, e a jovem Rice também está ótima no papel, atuando de igual para igual com Gosling e Crowe. A trama também acha espaço para outra mulher poderosa na figura da promotora interpretada por Kim Basinger, e o meninão Black não resiste a tornar explícita a referência a Los Angeles: Cidade Proibida (1997) ao fazer o personagem de Crowe dizer que a conhece… Basinger, no entanto, tem uma atuação monótona e sem vida. Ao contrário dela, a dupla de vilões interpretados por Keith David e Beau Knapp é bastante divertida.

the-nice-guys-movie-poster-01-600x350Porém, apesar do brilhantismo de Gosling em especial, o grande astro de Dois Caras Legais é mesmo Shane Black. Há pouco tempo vimos Paul Thomas Anderson se aventurar na praia do neo-noir com Vício Inerente (2014), seguindo a tradição de grandes cineastas que fizeram versões divertidas e diferentes desse tipo de história, gente como Robert Altman em O Perigoso Adeus (1973), Quentin Tarantino em Pulp Fiction (1994) e os irmãos Coen em O Grande Lebowski (1998). Black, claro, não está no nível destes caras, nem aqui nem em Beijos e Tiros – ele, por exemplo, não abraça o absurdo como Anderson nem se entrega de vez ao nonsense, exceto por uma breve cena em Dois Caras Legais com uma abelha falante (!). Mas suas brincadeiras de gênero são sempre divertidas, embora às vezes se sinta que o diretor está forçando a barra, tentando ser mais esperto e legal do que realmente é. Seu cinema de caras durões e mistérios de Los Angeles sempre consegue trazer ao menos alguns sorrisos ao espectador, e Dois Caras Legais são duas horas de personagens de Shane Black “shane-blackeando”. O final até sugere uma continuação, seria legal de ver.