No último final de semana, o cinema amazonense saiu premiado do V Recifest: Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero, por meio do filme “Maria”. Dirigido por Elen Linth, o documentário é fruto da série Territórios, projeto desenvolvido pela Eparrêi Filmes contemplado pelo edital PRODAV 08 – TVs Públicas Região Norte. Ele levanta temáticas concernentes ao corpo da travesti, o diálogo da cidade com esse corpo e a discriminação e aceitação.

O Cine Set conversou com Maria Moraes, que protagoniza o documentário e assina o roteiro ao lado de Elen Linth.

Cine SET – Você e Elen Linth roteirizaram o filme juntas. Como foi esse processo?

Maria Moraes – De reconhecimento de meu olhar e poética, da minha pessoa como criadora e narradora da própria história. No processo fui afetada pelo movimento da orixá que rege a produtora, Yânsa, tendo na câmera minha espada e me permitindo a dançar com ela.

O processo envolveu me reconhecer, também, nas narrativas femininas ali presentes, Elen Linth, Riane Nascimento e Dheik Praia, mulheres negras, guerreiras, que aquecem a vida. Estávamos todas espelhadas no meu olhar. Elen fez cinema comigo, e não sobre mim, para mim isso é um encontro.

Cine SET – Quem é “Maria”?

Maria Moraes – Maria Moraes, natural do estado de Amazonas, iniciando sua trajetória com danças brasileiras em grupos de cultura popular e em intervenções culturais nas ruas e esquinas na cidade de Manaus, tendo seu laboratório no movimento de ocupação política OCUPA MINC MANAUS, que lhe proporcionou encontros com a resistência em cultura e arte.

Maria é uma pessoa, que descobriu o cinema fazendo poemas e poesias para seu mundo encantar. Ativista dos direitos dos humanos, contadora de historias, artista e batuqueira do Maracatu Pedra Encantada e Maracatu Baque Mulher Manaus.

Cine SET – Como nasceu a ideia de “Maria”?

Maria Moraes – O filme “Maria” surge da Série Territórios, projeto da Eparrêi Filmes contemplado pelo edital PRODAV 08 – TVs Públicas Região Norte. Trazendo pelo olhar de cinco mulheres periféricas de Manaus vivencias acerca do direito à cidade, conflitos urbanos e discriminação por endereço. Elen fez o convite para que esse episódio fosse um filme, percebendo a importância política do mesmo está circulando em festivais que abordem a temática.

Cine SET – Como foi estar no ponto central do filme?

Maria Moraes – Natural.  Eu sou o próprio espelho e todas as pessoas são tão iguais a mim em importância no mundo. Todas nossas vivências são filmes que acontecem, todos somos protagonistas. Meu filme não acabou; ainda o escrevo.

Cine SET – E o processo de gravação, como funcionou?

Maria Moraes – Encontros num período de 3 meses em locais que representassem os territórios por onde transito e que marcam as memórias as quais me refiro no filme. Sendo estes locais, o rio, a mata, as ruas, as praças, as esquinas, o quarto, a universidade. O filme traz muito movimento, a gravação também foi isso, mas que trouxe o tempo para estar no presente, um tempo de pensar nesse presente.

Cine SET – Na construção do documentário, há muitas referências visuais artísticas. Como foi atuar nessas intervenções?

Maria Moraes – O filme Maria é um documentário, a vida é encantada e nós podemos dançar com nossas sombras em qualquer lugar. Todas as cenas presentes são retratos do meu cotidiano e de minha vontade de intervir no mundo, do desenvolvimento do meu ser político e artístico.

Nosso repertório de representações de corpos, identidades, desejos e afetos está tão limitado que não se consegue olhar para vivências LGBTs e QUEERs como naturais, por isso enfatizo essas referencias visuais e artísticas como possibilidade de fazer de meu corpo e vivência,  arte e resistência.

Cine SET – Como a cidade dialoga com “Maria”?

Maria Moraes – Pelas pessoas, pelos encontros que fiz. Minhas memórias são atravessamentos de outras historias sobre mim, sobre todas as travestis, mulheres cis e trans que resistiram e descolonizaram nossos corpos e vivencias para que eu estivesse aqui hoje afirmando minha existência MARIA. A cidade dialoga quando ela resiste.

Cine SET – Como é ser uma mulher trans em uma cidade como Manaus?

Maria Moraes – Resistência. Nas estatísticas da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travesti no mundo, com expectativa de vida de 30 a 35 anos, estando o Amazonas em terceiro no ranking de violência contra LGBT no Brasil (GGB) e 9º Estado brasileiro em assassinatos de mulheres, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Parece absurdo ter de lembrar isso as pessoas. Nós mulheres e LGBTs não estamos sendo acolhidos por essa cidade, por isso gritamos e resistimos, nas ruas de Manaus, por gênero e sexualidade nas escolas, pelo fim da violência contra as mulheres, pela autonomia de nossos corpos e emancipação das vivências.

Cine SET – Há referências a rua 10 de Julho com Ferreira Pena n37 no documentário e há uma carga dramática muito forte ao citá-la. Qual a importância de destacar esse local ao retratar a temática de “Maria”?

Maria Moraes – Um convite a se ouvir as esquinas, um convite para ir a rua 10 de Julho com Ferreira Pena e ouvir nossas histórias, travestis, trabalhadoras sexuais, sem tetos. Para onde quer que eu ande em “Maria” há placas que me levam a essa rua, a essa esquina, a viver um filme que não é meu, um personagem que não sou eu, como Roda Viva. Por isso se grita.

Cine SET – “Não se ama travesti hoje” é uma das frases impactantes do filme e a discussão levantada em torno do corpo da travesti, também. Como você vê a importância de falar desta questão na sociedade atual?

Maria Moraes – Quando falo de amor, falo de afeto, aquele construído para além das genitais, para além do amor romântico, quando se consegue amar um corpo não esvaziado da sua mente.  Esse corpo marcado pelos olhares de outros, como o corpo de peito e pau, que ora é ocultado, mas que surge como corpo de domínio público, de todos para todos.  Há uma ausência de humanidade no olhar do outro sobre meu corpo que quero preencher com meu olhar. Falo e deixo incomodar.

Cine SET – Qual a sensação que “Maria” quer reforçar ao seu final?

Maria Moraes –  As frases “bem me quer” e “mal me quer”, são um jogo, tipicamente construindo nas brincadeiras, daquelas ditas “de menina” e que fala de afeto. A frase que for expressa na última pétala representa supostamente a verdade entre o objeto de afeto gostar da pessoa ou não. Eu jogo motivada pela atração em relação a quem se deixou ser atravessada pela minha história.

Cine SET – Para você, qual foi o maior desafio em “Maria”?

Maria Moraes – Eu precisava falar, por isso não foi um desafio, foi uma oportunidade de deixar que minhas memórias atravessassem as pessoas. Reconheço que não é confortável falar de minhas dores e processos de cura sabendo que isso me incomoda e incomoda as pessoas, mas há coisas a se iluminar.


“Maria” será exibido na Mostra do Cinema Amazonense neste sábado (2) a partir das 19h no Les Artistes – Café Teatro, localizado na Avenida Sete de Setembro, 377 – Centro de Manaus.