Com “O diário de uma adolescente” (2015), a estreia de Marielle Heller na direção foi celebrada em Sundance no ano passado. O filme foi comparado principalmente com “Ghost World” (2001), de Terry Zwigoff, e “Anti-herói americano” (2003), de Shari Springer Berman e Robert Pulcini, por ser uma bem-sucedida adaptação de obra em quadrinhos (nesse caso, da artista Phoebe Gloeckner). A captura do estilo da graphic novel, a inserção de animação no live action, a recriação de época e a excelente trilha sonora fortalecem esses paralelos, mas Heller soube dar ao seu filme identidade própria, para o bem e para o mal.

A partir de seu fio condutor, “O diário de uma adolescente” é um filme que se passa nos anos 1970, mas que parece ter nascido para a nossa época de constantes problematizações. Na trama, Minnie (Bel Powley, perfeita para o papel) é uma adolescente de 15 anos que acaba de perder a virgindade e toma o acontecimento como um despertar de uma vida adulta. O complicado aí está no fato de que ela fez sexo com um homem de 35 anos, Monroe (Alexander Skarsgård), que é também o namorado de sua mãe, a desregrada Charlotte (Kristen Wiig). A moça lida com a situação a partir de gravações em fitas k-7, que acabam sendo seu diário, assim como através dos desenhos que faz, fonte dos elementos de animação que vemos ao longo do filme.

O que poderia se resumir basicamente em um drama sobre abuso de menores ganha nuances diversas ao fincar a perspectiva a partir do ponto de vista de Minnie. Não interessa à personagem, do alto de sua (falta de?) maturidade, analisar a questionável relação que tenta manter com Monroe, que mantém uma vida dupla ao fazer sexo com a adolescente enquanto preserva o relacionamento com Charlotte. O filme toma para si o recorte que a própria Minnie dá à sua vida, na qual a busca por amar e ser amada é uma parte importante, mas não é a única dentro do turbilhão de mudanças que a tal passagem para a vida adulta traz.

A contextualização também complexifica o filme, uma vez que a San Francisco de 1976 era ainda lar e época dos últimos respiros da contracultura numa época em que a disco music começava a florescer e a popularização da cocaína florescia. É exatamente nesse ambiente que Minnie é criada por sua mãe. Wiig surpreende no papel dramático como a relapsa Charlotte, uma mulher que não titubeia em tratar a filha como “pequena adulta”, usar drogas lícitas e ilícitas na presença dela e incitar Minnie a mostrar-se mais atraente para os rapazes de sua idade, ao passo que mantém uma relação emocional fria com a moça.

Peso relativo

Descrevendo e analisando dessa maneira, dá-se a entender que “O diário de uma adolescente” é um filme sombrio, com ecos de “Christiane F.”, mas o peso dessa comédia dramática é relativo. O filme também tem muito pouco de um “Juno”, por exemplo, que trata de se autoconsumir em sua protagonista de falas afiadas. Heller escolhe dar certa leveza a “O diário de uma adolescente” ao mantê-lo na perspectiva melancólica, porém não totalmente formada, de sua protagonista.

Minnie tem as aspirações e desejos que se espera de sua idade, envoltos pelo que o ambiente familiar instável lhe proporciona, buscando apenas se conhecer e se fortalecer no meio da confusão em que vive. Nesse sentido, o trabalho de Powley como a protagonista é digno de todos os elogios, pois a atriz encontra o tom certo para não fazer de Minnie nada além da menina que ela é, embora isso também perpasse a ebulição de seu apetite sexual.

Porém, não espere uma “ninfeta” de Powley, conceito esse já questionável dentro das infinitas problematizações que tem se popularizado sobre as representações do feminino no cinema atual. Sua Minnie se parece com uma moça de 15 anos, e se abre à descoberta do sexo e da paixão como uma: às vezes de forma ingênua, às vezes de forma lasciva, e outras vezes de forma manipuladora. O filme então acaba sendo até mais positivamente afirmativo dentro dessas problematizações que o quadrinho no qual se baseia, mas isso à custa de suavizar trama e, notadamente, as personagens de Charlotte, muito mais abusiva nos quadrinhos, e da melhor amiga Kimmie (Madeleine Waters), muito mais problemática que a protagonista.

Por um lado, a mudança é interessante. A relação entre Minnie e Kimmie, por exemplo, é de uma cumplicidade que, se não recebe tanto destaque, pelo menos compensa por não mostrar mulheres sempre em conflito umas com as outras. Fica também um pouco mais claro entender porque Minnie ainda mantém afeição pela mãe apesar de sua criação. Além disso, a figura cativante de Powley consegue gerar uma empatia quase imediata, ainda que as experiências (passadas ou presentes) das espectadoras no geral não sejam tão duras como as de Minnie.

Porém, é nessa suavização também que surge outro problema nas leituras possíveis do filme: o personagem de Monroe. Embora o filme o mostre como irresponsável, amoral, frustrado e imaturo, a melancolia na interpretação de Skarsgård, quando aliada à beleza física do ator, aproximam Monroe do aceitável junto a uma parcela do público, o que gerou certa polêmica nas discussões sobre o filme nos EUA. Heller pode não ser sido nada sutil na premissa mais geral de seu filme, que é o fato de que garotas vivenciam o despertar de seus desejos sexuais tão intensamente quanto garotos, mas a diretora não apresenta Monroe de maneira explícita como um “abusador” ou “predador”, o que pode confundir espectadores menos atentos e já gerou até acusações de internautas contra críticos que argumentaram a favor da escolha criativa da diretora.

Essa não discussão é, ao mesmo tempo, o trunfo e o calcanhar de Aquiles de “O diário de uma adolescente”, mas Heller consegue se proteger (parcialmente) por manter o filme com um posicionamento similar ao da graphc novel de Phoebe Gloeckner. Curiosamente, a autora encara a relação entre Monroe e Minnie como abusiva, o que torna tudo ainda mais impactante pelo fato de que “O diário de uma adolescente” ser uma obra autobiográfica, como Gloeckner discute nesta entrevista (em inglês). É um tópico do filme de Heller que não é uma só crítica que irá destrinchar por completo, como bem tem ficado registrado nas discussões online sobre o filme.

Do conteúdo à forma

Outros pontos são mais indiscutíveis em “O diário de uma adolescente”. A trilha sonora é uma delas. Canções dos fantásticos Heart, Nico, T-Rex, Stooges e Television são compostos mais que bem-vindos para trazer os anos 1970 à tona no filme. Essa atenção à música gera ainda um momento especialmente querido aos cinéfilos na cena em que Minnie vai fantasiada a uma das emblemáticas sessões de meia-noite de “Rock Horror Picture Show”, musical cult da época. Poucas coisas seriam tão a cara do universo da personagem.

Aproximando-se da pegada dos filmes indie atuais, “O diário de uma adolescente” alinha o seu ar retrô não só com a música, mas com a óbvia fotografia de Brandon Trost. Carregada de tons esmaecidos e próximos dos marrons e laranjas, está longe de ser a opção mais original para retratar o período, mas resulta num trabalho belo que destaca todos os pequenos detalhes propostos pela direção de arte de Emily K. Rolph e figurino de Carmen Grande.

Ainda que a questão-Monroe e o desfecho um tanto apressado e simplista atrapalhem a obra, Marielle Heller fez de “O diário de uma adolescente” um filme que consegue estender a mão ao seu público-alvo (que, em teoria, nem poderia ver o filme, que tem uma classificação indicativa alta) e de fato dialogar com ele. É uma obra que fala com naturalidade e sem culpa sobre o papel da sexualidade na passagem da infância à juventude, pontuando muito do que muitas mulheres vivenciam, mas que raramente é falado.