Cinema e Literatura sempre caminharam de mãos dadas nas artes e quando a química entre os dois se conecta, os resultados são sempre impressionantes, principalmente quando o sentimento de amor entra na equação. Severina, segundo longa-metragem de Felipe Hirsch, oito anos depois da sua estreia cinematográfica em Insolação (2008), serve para ilustrar que histórias de amor com elementos literários estão sempre se reinventado no cinema, e melhor, o alimentando com uma narrativa romanesca intimista que fala sobre amor à literatura e às musas.

Baseado num romance do guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, acompanhamos o dono da livraria (o ator argentino Javier Drolas, do ótimo Medianeras) um livreiro solitário que administra sua livraria em um bairro tradicional de Montevidéu, que alterna o prazer da leitura com a aspiração de tornar-se escritor.

Sua rotina é atender os clientes e organizar leituras com aspirantes a filósofos e escritores, que ele próprio denomina como “viciados em livros”. Essa rotina é alterada pelo aparecimento da jovem Ana (Carla Quevedo, do também ótimo argentino O Segredo de Seus Olhos) que passa a frequentar a livraria para furtar livros. Encantado e intrigado por ela, o livreiro finge não perceber os roubos para que ela sempre retorne, ficando aos poucos obcecado por ela – e o público também – e o mistério que a envolve.

Se há algo que se revela forte em Severina, é como Hirsch cria sua cartografia de delírio amoroso obsessivo. Ana é uma força da natureza, de mistérios atrativos que seduzem o livreiro, que se vê cada vez mais absorto na sua obsessão pela moça, de realizar o inimaginável por ela. Mais que uma ladra de livros, Ana é a ladra também de nossos interesses como público, pela sua presença etérea, próxima das musas clássicas que inspiram histórias amorosas.

Semelhante à música dos Engenheiros do Hawai, Refrão de Bolero: o livreiro se encontra com o coração na mão, como uma frágil testemunha de um crime (no filme, da paixão) sem perdão, enquanto os lábios de Ana são labirintos que levam aos mistérios do enredo. Não à toa, como um bom livro, Severina transmite uma vontade enorme de estarmos com um caderninho de anotações ao nosso lado, para anotarmos os belos diálogos e citações – inclusive a que abre o filme de Williams Carlos Williams é encantadora e denota sua essência – que aparecem durante sua projeção.

 O fato é que o longa-metragem, aos poucos, durante suas 2 horas de duração, faz que a linha entre cinema e literatura se estreite, deixando o trabalho poético, literário e inspirador. A divisão narrativa do filme em capítulos também revela o flerte amoroso fatal entre estes dois segmentos de arte, que reverencia os amores coléricos de Gabriel García Márquez ao fascínio pelos livros dos contos fantásticos de Jorge Luís Borges.

É interessante observar que em uma época em que a imagem e seu impacto exercem grande força no cinema comercial e na própria sociedade, assistir um filme como de Hirsch, centrado num estilo intimista, que valoriza o texto e diálogos, indicando que tanto a atmosfera de sua mensagem quanto o sentimento de seus personagens, são mais relevantes que a trama que acontece diante de nossos olhos. Assim como o doce café que nos revitaliza em um dia frio, o filme acalenta nossos corações com seu lirismo casual.

A cenografia visual de Severina também se conecta a este universo literário. A fotografia com traços acinzentados e fantasmagóricos do português Rui Poças, que já demonstrou seu talento em Zama e Ornitólogo, contribuem na jornada climática de mistério, situada numa dimensão atemporal inserida no ambiente ficcional, que mergulha o espectador na própria poesia transmitida pelo filme. As elipses e os planos fechados, muitas vezes excessivamente próximos dos personagens (quase os sufocando) apenas reforçam que esta é uma realidade passional, de desejos incontroláveis frente ao amor.

Neste ponto é bom também ver a evolução do seu cineasta. Sua estreia Insolação era enfadonha devido sua pretensão estética. Aqui, ele revela-se mais maduro e menos preso ao visual, para explorar uma narrativa eficaz na metalinguagem literária, de vertente surrealista, que a cada novo capítulo, apresenta ousadia e delicadeza dentro da sua história. O seu texto de inquietações amorosas existenciais funciona como uma espécie de fábula sobre como o amor está associado ao perdão, de como a vida humana é construída pelas coisas rotineiras, vistas como simples dentro do filme e pelas coisas fantasmas, estas marcadas pelas dores e decepções. Para Hirsch são estas que nos moldam para o amadurecimento da vida, e muitas vezes, são metáforas de que precisamos perdoar para esquecer o passado. Uma visão simples, mas que o filme consegue transmitir de forma complexa em sua mensagem.

Tudo isso, com um elenco coeso, que tem atores hispânicos celebrados como Alfredo Castro e Daniel Hendler em papéis menores. Javier Drolas, é o perfil ideal para criar o elo de ligação do espectador com seu delírio amoroso. Por sua vez, Carla Quevedo acerta na composição ambígua da musa misteriosa, e molda todo o fascínio do filme desenhado pelo diretor.

Ainda que tenha realmente excessos na sua duração – a sua última meia hora, cansa pelas suas redundâncias – Severina é outra bela surpresa do cinema nacional focada na jornada de transformações de seu protagonista, assim como os ótimos Pela Janela e Arábia, revelando um início de 2018 promissor no cenário brazuca. Oferece um belo namoro entre cinema e literatura, unindo as duas artes através de um passeio muito interessante pelas várias vertentes da sétima arte.