Ah, Hollywood, você não aprende… Não deveria ser tão difícil assim fazer um filme ao menos legal baseado no game Mortal Kombat. Mas pelo visto é.

Numa nota pessoal, já joguei algumas versões do game ao longo das décadas, em diferentes plataformas. Mortal Kombat sempre foi um jogo divertido, apoiado em personagens com visuais e estilos de luta inventivos e legais, e numa violência maluca estilo Tom & Jerry misturada com muito sangue e pitadas de sarcasmo. Já houve até uma versão anterior para as telas, lançada justamente quando o jogo estava explodindo em popularidade, Mortal Kombat (1995), dirigido pelo britânico Paul W. S. Anderson.

Este novo Mortal Kombat, lançamento do estúdio Warner Bros. e da HBO Max, traz o pedigree do produtor James Wan, um bom orçamento e bons valores de produção. Coisas, por exemplo, que a primeira adaptação para o cinema, tosca e abobalhada, não tinha. Ainda assim, o filme de Anderson era mais divertido e contava sua história de modo mais satisfatório do que este novo. Por que Hollywood continua fazendo esse tipo de coisa, errando no que já não deveria mais errar?

Tudo no filme parece e soa preguiçoso, sem alma. E o pior é que o começo é interessante: na cena de abertura, de uma beleza plástica realmente admirável, vemos dois bons atores – Hiroyuki Sanada de O Último Samurai (2003), e Joe Taslim, do novo clássico do gênero ação Operação Invasão (2011) – se enfrentando numa paisagem bucólica japonesa. Mas, mesmo aí, já aparece um sinal amarelo quando fica claro, por alguma razão, que um deles fala chinês e o outro japonês. A batalha resulta em um sobrevivente, um “escolhido” (mais um!), que está destinado a representar a Terra num torneio contra inimigos vindos de outra dimensão.

Esse escolhido é, curiosamente, um personagem que não existe nos games e foi criado para o filme, um sujeito chamado Cole Young (Lewis Tan). Porque os roteiristas sentiram a necessidade de criar outro herói, tendo dezenas de personagens à disposição, é algo que não se explica. Assim como não se explica o fato dele ser o pior tipo de protagonista possível: um cara que já é apresentado apanhando, que vai sendo levado passivamente de um ponto a outro da trama por outros personagens, que é preciso ser salvo com frequência e, no desfecho, acaba colocado de escanteio pela própria história.

EXPERIÊNCIA CINEMATOGRÁFICA INÓCUA

Enfim, Young é recrutado para lutar no tal torneio, o Mortal Kombat – e, o maior dos absurdos, não tem Mortal Kombat no filme, o torneio nunca chega a acontecer de verdade dentro da narrativa. Tudo no filme parece que foi criado seguindo o manual de más decisões de Hollywood: personagens telegrafam suas funções na trama, toda a mitologia novelesca dos games é resumida num letreiro na abertura para o espectador ler (!), e a trama é cuidadosamente engendrada para deixar portas abertas para as sequências, ao invés de se preocupar em resolver esta história em particular. É o típico produto blockbuster hollywoodiano de hoje, milimetricamente calculado para agradar aos fãs, tentar fazer novos, e não ofender ninguém. Ou seja, o mais inócuo tipo de experiência cinematográfica possível hoje em dia. Quase duas horas de praticamente nada.

Para tentar disfarçar a pobreza da experiência, há vários fanservices ao longo do filme: falas clássicas do game são ditas com frequência, os personagens têm grande semelhança física com suas contrapartes do jogo, e há a boa e velha violência cartunesca, retratada em efeitos de CGI que às vezes são bons, às vezes são muito falsos.  Além da violência, há palavrões, diálogos engraçados e tiradas de cultura pop estilo Deadpool (2016). O elenco inteiro está bem ruim, mas não é culpa dos atores: eles não têm nada com que trabalhar. Apenas Josh Lawson se destaca como o alívio cômico/bandido Kano, pelo simples fato de que é o único para quem os roteiristas se lembraram de fornecer uma personalidade. E o diretor Simon McQuoid cede de bom grado seu posto de narrador da história para os coreógrafos de lutas e o pessoal da computação gráfica.

Frequentemente durante o filme, a sensação é de assistirmos a alguém jogando por nós, com fanservices sendo colocados para a turma fã do jogo. Essa é a maldição dos filmes adaptados de games, que até hoje não conseguiu ser vencida. Alguns fãs talvez acabem gostando deste filme – talvez – e me incluo entre eles, mas mesmo sendo fã a experiência me parece, acima de tudo, chata. E não era para ser: para fazer um filme Mortal Kombat divertido e legal – e é o que ele deveria ser, não é para ser uma obra-prima da sétima arte, afinal – a planta-baixa já existe.

Era só refilmar Operação Dragão (1973) ou O Grande Dragão Branco (1987), os clássicos que transformaram Bruce Lee e Jean-Claude Van Damme em astros mundiais – e que foram inspirações para a criação do game lá no começo dos anos 1990 – mas incluindo superpoderes e sanguinolência gratuita e exagerada. E por favor, se concentrando num herói de verdade, sem entulhar a história de um monte de personagens que não vão ter tempo para serem explorados, e sem se preocupar em deixar a melhor parte para a continuação, frustrando quem está assistindo ao filme que existe neste momento. Se querem começar uma franquia, no início foquem no básico. Lições simples. Mas aparentemente difíceis para Hollywood aprender.

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