“Tori e Lokita” é uma produção que versa sobre a vida real e no que há de mais cru e  impiedoso. Escrito e dirigido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, acompanhamos ao longo de quase 1h30 de projeção as desventuras de dois irmãos adolescentes que precisam lidar com a xenofobia, o racismo e a misoginia. Os protagonistas estão em busca de asilo na Bélgica e, para isso, precisam provar que são consanguíneos, uma mentira que Lokita (Joely Mbund) não consegue sustentar e, portanto, desencadeia todas as desgraças as quais acompanhamos. 

Como bons contadores de história, os Dardenne dosam de forma cruelmente realística os infortúnios que podem assolar crianças negras imigrantes, nos mergulhando num submundo que aflige principalmente Lokita. Já que para sobreviverem enquanto aguardam a saída do pedido de residência da moça, os irmãos trabalham como entregadores de droga, são aterrorizados por traficantes de gente – também negros – que os transportaram até à Bélgica e querem receber seu pagamento, além da personagem de Mbund passar por crises de ansiedade e ser abusada sexualmente. 

Sob o viés político

Por um lado, “Tori e Lokita” prova ser uma discussão política ao desencadear as violências e agressões as quais os irmãos são submetidos, contudo, não sei se proposital ou não, alguns elementos que influenciam na jornada étnica e racial são colocados de forma excludente na projeção como o sistema de imigração europeu e a participação ativa dos nativos no tratamento dado aos irmãos. 

A imigração, que poderia ser representada pelas pessoas que entrevistam Lokita por sua ligação com Tori (Pablo Schils), está sempre fora de quadro ou sendo representada de forma genérica como na cena em que o menino invade o escritório da assistente social; como se os irmãos cineastas isentassem os agentes principais da condição dos protagonistas. 

De forma semelhante, nunca são nativos daquele país que violentam os protagonistas. Sempre são Outros que os atingem, seja do Leste Europeu – como o dono do restaurante e os fabricantes dos entorpecentes – seja imigrantes negros que exploram seus iguais. Há um olhar complacente dos Dardenne aos seus pares, aqueles que poderiam realmente auxiliar Tori e Lokita, resultando na falta de responsabilidade e autocrítica dos próprios cineastas ao eximir os europeus das consequências da crise migratória. Algo notadamente assimilado no desfecho impiedoso que escolheram para sua narrativa,  cedendo lugar a desesperança e abrindo o leque para uma série de questionamentos sobre a narrativa defendida. 

Ausência de leitura racial

Pior do que isso, no entanto, mostra-se a leitura racial dos personagens negros. O fato dos protagonistas mentirem sua consanguinidade e comercializarem entorpecentes alimenta o estereótipo de negros e refugiados na Europa como desonestos, inconfiáveis e relacionados a ilegalidade. É perceptível o quanto todos os personagens de cor presentes ao longo da projeção encaixam-se nesse perfil, ainda que tentem justificar suas escolhas. Justificativa esta não compreendida pelos roteiristas que afundam os protagonistas em um espiral de anátema, atribuindo culpa a eles pelo uso de meios para chegar ao fim. 

Dentro do olhar privilegiado com o qual os Dardenne representam a trama, é preciso destacar o trabalho de Mbundu e Schils. A dupla de protagonistas possui uma química latente e facilmente pronta a conquistar o público, prova disso é o quanto torcemos e sofremos junto com eles. Por meio de suas vozes ao entoar a canção de ninar italiana, reconhecemos e nos afundamos na descontração e na desesperança que ronda sua procura por um mundo de oportunidades e liberdade. 

Em um estágio no qual os sonho americano naufragou, os irmãos Dardenne mostram o quão desalmado e prepotente são os caminhos na busca do sonho da cidadania europeia. Permeado de racismo, exclusão e ausência de autocrítica, a narrativa de “Tori e Lokita” foi feita para deprimir, mas também para discutir a sociedade contemporânea e sua rigidez velada. Cabe a cada um de nós escolher abraçar ou lutar contra.