Quando estava começando a ler sobre cinema na internet no final dos anos 1990 e começo dos 2000, logo descobri o Cinemascópio, site/blog do Kleber Mendonça Filho. Um texto dele em especial, do qual eu gostava muito, era sobre o clássico do terror e ficção-científica O Enigma de Outro Mundo (1982), do diretor norte-americano John Carpenter. Não consegui achar mais o link para esse texto, mas lembro de que nele, Mendonça Filho dizia que “tinha perdido a conta de quantas vezes” o viu, em vídeo ou na TV, ao longo dos anos.

Alguns anos depois, notei que Mendonça tinha virado diretor, realizando seus primeiros curtas como A Menina do Algodão (2002) e Vinil Verde (2004), ambos voltados para o terror, além do documentário Crítico (2008).

Uma coisa que, para mim, sempre ficou clara a respeito dele, era a sua relação com cinema de gênero, e no cinema de Hollywood, especialmente para quem cresceu no final dos anos 1970 e começo dos 1980, o nome de John Carpenter foi muito importante dentro dessa tradição. Carpenter, claro, é mais conhecido como cineasta de terror graças a Halloween: A Noite do Terror (1978), que inaugurou a onda do cinema slasher, e o já mencionado Enigma, entre outros. Mas também trabalhou em outros gêneros, como ação e ficção-científica, em obras quase sempre dotadas de uma atitude anárquica e uma disposição niilista para “chutar o balde” das narrativas. E quando se fala dos longas de ficção de Mendonça Filho, em Aquarius (2016) não se percebe uma influência direta, mas em O Som ao Redor (2012) com seu clima de paranoia e, especialmente, em Bacurau (2019), é possível perceber essa paixão do diretor pelo gênero, e, neste último, até uma vontade de confrontá-la.

Mas esse confronto seria assunto para outro texto. O fato é que, como fã tanto de Mendonça Filho quanto de Carpenter, ver Bacurau foi uma grande experiência para mim, na qual o diretor brasileiro parecia se alimentar da energia e de momentos específicos da carreira do norte-americano para ajudar a compor sua narrativa. Ora, o nome da escola da cidade de Bacurau não se chama “João Carpinteiro” à toa – ri bastante no cinema quando vi isso…

Então, vamos lá, com SPOILERS a seguir… Há vários momentos em Bacurau nos quais Mendonça Filho homenageia o “príncipe das trevas”. Como…

A abertura

Bacurau se inicia no espaço, mostrando as estrelas enquanto a câmera passeia para enfocar a Terra. Esteticamente, lembra bastante a abertura de O Enigma de Outro Mundo, quando vemos a nave alienígena entrar na atmosfera terrestre.

O drone

O drone que flutua pela paisagem árida, e que parece um disco voador de filme sci-fi antigo, também lembra bastante as câmeras de vigilância que voavam por Los Angeles em Eles Vivem (1988), filme de Carpenter sobre a Terra já ocupada por ETs, que se tornaram a nossa “classe dominante”. Eles Vivem também é uma homenagem aos velhos filmes B de ficção-científica.

O cerco (e o western)

Bacurau, a partir de certa altura da narrativa, se torna um filme “de cerco”, com personagens presos num lugar – a cidade, no caso – e sendo perseguidos por uma força estranha. Esse é um tema, e cenário, comum a vários filmes carpenterianos, como o policial Assalto à 13ª. DP (1976), o terror Príncipe das Trevas (1987) ou a ficção-científica trash Fantasmas de Marte (2001). Carpenter foi muito influenciado pelo western, em especial o seu favorito, Onde Começa o Inferno (1959), de Howard Hawks. Bacurau não deixa de ser também uma espécie de western, um brasileiro, no qual algumas tradições do gênero são adaptadas para um contexto mais “nordestino”.

Night

A homenagem não fica apenas nas referências cinematográficas, mas também nas musicais. Uma cena noturna de capoeira em Bacurau recebe o acompanhamento musical de Night, faixa do disco Lost Themes de Carpenter, lançado em 2015. Carpenter também é músico e compôs as trilhas sonoras de quase todos os seus filmes, incluindo um dos mais famosos temas da história do cinema, o de Halloween. Embora ele hoje esteja aposentado das telas, Carpenter continua um músico ativo, lança discos e faz shows com frequência. Afinal, as trilhas de seus filmes acabaram influenciando vários nomes da música eletrônica.

O assassinato do garotinho

Um dos momentos mais chocantes de Bacurau é o assassinato do garotinho, à noite, pelos caçadores. O momento nos choca porque, geralmente, crianças não morrem em filmes. Mas esse momento é uma óbvia homenagem à cena do assassinato da garotinha em Assalto à 13ª. DP, o segundo longa-metragem de John Carpenter. O norte-americano usou essa cena para mostrar que seus vilões não estavam para brincadeira. Mendonça Filho faz o mesmo, o que amplifica nossa satisfação quando os moradores da cidade começam a revidar…

Um grande filme… sobre o cinema

Para além das suas considerações sobre o momento político atual do Brasil, Bacurau acaba sendo uma experiência sobre o cinema, na qual seus realizadores, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, criam uma historia na qual parecem canibalizar as influencias de décadas de cinema estrangeiro sobre suas mentes, e as recolocam na tela sob uma perspectiva mista de vingança e admiração. Sim, porque fica muito claro que os realizadores de Bacurau têm, sim, admiração pelos cineastas que os trouxeram até este momento. Embora seja possível notar outras influências no filme – Kurosawa e seus Os Sete Samurais (1954), um pouco dos filmes Mad Max de George Miller – a maior é mesmo o mestre do terror e um dos grandes nomes do cinema fantástico em todos os tempos, John Carpenter.