Com apenas dez episódios, “Assédio” economiza nas firulas características da teledramaturgia brasileira. Do contrário: a produção assinada por um time de mulheres (a autora Maria Camargo e a diretora Amora Mautner encabeçam a equipe) consegue, com pouco tempo, contar de forma eficiente e pungente a história de um grupo de vítimas de um médico cuja conduta não poderia ser mais diferente da alcunha de “doutor Vida”, à qual lhe foi dada pela mídia.

A história é baseada em fatos, o que torna ainda mais pulsante toda a dor vista na tela. O Roger Sadala de Antonio Calloni (aterrorizador na pele do personagem) é inspirado na figura de Roger Abdelmassih, médico acusado de mais de 50 estupros e outras dezenas de tentativas e que hoje está em prisão domiciliar em um condomínio de luxo em São Paulo.

O timing não poderia ser mais oportuno: há praticamente um ano, começaram a pipocar denúncias pesadíssimas contra Harvey Weinstein, Kevin Spacey e outros nomes de Hollywood, em reportagens e posts de redes sociais que acabaram por motivar os movimentos Time’s Up e #MeToo. É curioso que a série chegue justamente agora, mas sabemos que produções como essa demoram a ser feitas e tanto a estreia quanto a produção provavelmente foram simples coincidências.

Saber de tudo isso, no entanto, faz de “Assédio” uma experiência além do simples sentar no sofá para ver uma série. Pelo menos para esta que vos escreve, foi difícil ver dois episódios seguidos, tamanha a carga dramática impressa em cada momento. A escolha de focar o drama nas mulheres que rodeiam Roger faz da série um documento importante: seguimos as dores das vítimas, a angústia e a inquietação da repórter que tenta desvendar a história (o segmento ‘Spotlight’ que fez esta jornalista vibrar, vale ressaltar) e todo o calvário físico e mental da esposa do médico, que enfrenta um câncer e a desconfiança de que o marido está (‘apenas’) a traindo.

Para que a história flua, Maria Camargo e Amora Mautner trabalham com elipses, que evitam a famosa “barriga” dramatúrgica ao mesmo tempo em que instigam o público a querer saber o que acontece, já que cada intervalo de tempo é precedido por um “cliffhanger” (o famoso ‘gancho’ narrativo típico de fim de capítulo de novela e de livro).

A fluidez do roteiro e a mão firme da direção não seriam nada, no entanto, não fossem as interpretações: enquanto Calloni não economiza e é assustador e dissimulado, cada uma das atrizes tem seu momento de brilho. O destaque fica, mais uma vez, por conta de Adriana Esteves. Talvez a melhor atriz da televisão brasileira nos últimos anos, ela vive a dor de não poder realizar o sonho de ser mãe e de ter toda a sua vida roubada após o estupro na clínica de Roger. As cenas em que Adriana aparece sozinha, dando o depoimento para a câmera, são cruas, carregadas de raiva, tristeza, depressão e medo.

Mariana Lima é outra que tem uma tarefa difícil, já que vive a esposa do “monstro”: apesar de parecer nova demais para o papel (na primeira fase da trama, sua personagem já tem netos!, e a história tem várias elipses, como já falei), ela se joga de cabeça na dor de uma mulher que não sabe que também é uma vítima, mas de um relacionamento abusivo, já que Roger se aproveita da fragilidade física dela para humilhá-la e prendê-la, de certa forma, a esse casamento por puro e simples status. Dá para destacar também Jessica Ellen, Elisa Volpatto, Hermila Guedes e Paula Possani, além da participação especial de Mônica Iozzi (a atriz, aliás, responde a um processo na Justiça por ter criticado Gilmar Mendes após este conceder habeas corpus ao Roger da vida real).

Cada mulher tem seu momento em cena: de forma esperta, os primeiros episódios são batizados com os nomes das vítimas, e essa lista fica maior a cada nova etapa da trama. Essa escolha vai além da homenagem: ela dá calafrios, assim como a abertura, ao som de uma versão fantasmagórica para a outrora meiga “Noite Feliz”. É um crescendo que fica amargo quando se percebe que o final feliz está apenas na superfície: além do trauma que nunca vai abandoná-las, o homem que o causou não ficou nem três anos preso em uma cadeia. E sentir que isso não foge da realidade e que os Harveys Weinsteins e Bretts Kavanaughs da vida não estão tão longe de seguir os mesmos passos do personagem de Calloni é mais que frustrante: é amedrontador. Ao mesmo tempo, ver a união feminina e um banho de sororidade na tela é um alento em tempos tão sombrios.