A expectativa era alta. Os números das bilheterias não mentem. Dona de um arsenal respeitável de personagens femininas nos quadrinhos, a Marvel estava devendo um filme com uma protagonista mulher. Entre o uso da Viúva Negra como muleta romântica e o desenvolvimento bem a desejar da Feiticeira Escarlate, o público esperou pacientemente, entre alguns títulos esquecíveis protagonizados ou invadidos por personagens masculinos que já deram o que tinham que dar (ou alguém ainda aguenta o Homem de Ferro do Robert Downey Jr.?). Pois bem, Carol Danvers e Brie Larson chegaram para se juntar ao universo Marvel em um momento decisivo para a franquia “Vingadores”. Ainda que o resultado não alcance a obra-prima almejada, “Capitã Marvel” é um filme divertido e que sintetiza o que os pupilos de Stan Lee fazem de melhor.

Dirigido pela dupla Anna Boden e Ryan Fleck (ambos do simpático ‘Se Não Enlouquecer, Não Se Apaixone’), o filme mostra como Carol Danvers/Capitã Marvel se transforma em uma das heroínas mais poderosas do universo, ao mesmo tempo em que também apresenta as origens de Nick Fury, defendido por Samuel L. Jackson em vários outros capítulos da saga “Vingadores”.

Danvers nos é introduzida como “Vers”, integrante do grupo Starforce que é abduzida por Skrulls, aliens que conseguem mudar de forma e assumir até mesmo os DNAs de outros seres. Sem lembranças do passado, Vers é acometida por memórias avulsas da época em que era piloto do Exército no Planeta Terra. E é lá que ela vai parar após conseguir escapar dos Skrulls. Colocada frente a frente com Fury, ela se junta ao agente contra os aliens, enquanto algumas surpresas de seu passado colocam em cheque o que está certo e o que está errado em sua jornada.

Muito do sucesso de “Capitã Marvel” dependia da escolha da protagonista, e Brie Larson faz um trabalho competente como a heroína. A atriz cria uma Carol Danvers confusa, engraçada mas sem a palhaçada latente de outros personagens da Marvel, e que vai descobrindo pouco a pouco como equilibrar suas emoções em prol de um bem maior.

A graça do filme, porém, reside nas trocas entre Carol e Nick Fury (e o gatinho Goose, claro). “Capitã Marvel” faz justiça ao personagem que Samuel L. Jackson (aqui, rejuvenescido) interpreta há dezenas de filmes. Finalmente ele ganha um filme – e o quão simbólico é ver que a dupla principal desta produção é formada por uma mulher e um homem negro, sem a menor tensão sexual ou relação pai/filha-que-eu-nunca-tive?

A própria dinâmica de mentoria, tão comum em produções como essa, é dissipada e desconstruída com Yon-Rogg (Jude Law). É interessante como o filme equilibra a primeira e a última cena de Law e Larson juntos – e o quanto elas se complementam e dizem sobre os dois personagens. Ainda assim, o ator britânico tem um trabalho “apenas” competente no filme. O mesmo não se pode dizer de Annette Bening como Mar-Vell, que tenta, mas não consegue tirar leite de pedra de uma personagem que serve simplesmente como McGuffin da trama.


“But I’m a 90’s bitch”

Ambientado antes dos eventos do primeiro “Vingadores”, “Capitã Marvel” é mais uma mola propulsora para a história do grupo de heróis, e não um reflexo narrativo do que diabos o Thanos está aprontando. Há, sim, uma diegese já existente e firmada em mais de 15 filmes (!), além de sempre ter aquele fan service sob medida para o fã mais exigente dos quadrinhos.

De qualquer forma, Fleck e Boden trabalham com (e aproveitam bem) um canvas irresistível, que é a estética anos 1990. É divertido ver o ataque da protagonista, dentro da locadora “Blockbuster”, ao pôster de “True Lies”, eliminando Arnold Schwarzenegger (cujas incursões como o ‘Exterminador do Futuro’ certamente inspiraram esse momento do filme) e deixando apenas Jamie Lee Curtis, ela também a heroína de uma franquia de sucesso (‘Halloween’, caso você esteja tão por fora quanto Carol Danvers). Outro exemplo é a caracterização dos Skrulls, que lembram muito monstros/aliens de programas noventistas como Power Rangers, Guerreiros Tatuados de Beverly Hills (digam que vocês também lembram desse clássico!) ou até, por que não, Alf, o Eteimoso.

A trilha sonora também empolga. Dá pra ver que “Capitã Marvel” bebeu da mesma fonte de “Guardiões da Galáxia” em vários quesitos, e esse é um dos que salta.

As músicas escolhidas são quase todas certeiras: os hinos noventistas entoados por mulheres, em especial, funcionam como um passaporte para aquele universo – e, nesse sentido, a voz inconfundível de Gwen Stefani em “Just A Girl” é uma trilha tão eficiente para o clímax aqui quanto o acerto de contas em “Guardiões 2” ao som de “The Chain”, o hino raivoso de uma época igualmente raivosa do Fleetwood Mac. O passo em falso fica por conta de “Come As You Are”, que parece saída da playlist aleatória (ainda que anos 1990) da mesma curadoria do filme-shuffle-do-Spotify “Esquadrão Suicida”. Curiosamente (ou não), a música do Nirvana é a única entre as da trilha principal a ser cantada por um homem. Em compensação, tem Des’ree dizendo para Carol Danvers ser mais corajosa, e as meninas do TLC pedindo para ela e Nick Fury irem com mais calma.


Uma heroína que inspira (ou não?)

A co-direção de uma mulher e a escolha de uma atriz ativista se provaram acertadas em mais um aspecto importante de “Capitã Marvel”. Novamente, volto às outras duas Vingadoras citadas no primeiro parágrafo deste texto: além do foco nos relacionamentos amorosos, a Viúva Negra de Scarlett Johansson e a Feiticeira Escarlate de Elizabeth Olsen também sofrem da hiperssexualização tão comum a filmes com personagens masculinos no centro. A heroína vivida por Johansson, em especial, é um caso a se pensar no universo Marvel: para além da exploração do tropo da femme fatale, ela também é uma das personagens mais conhecidas do grupo dos Vingadores, além de ter uma intérprete que já se provou ímã de bilheteria. Mas só vai ganhar filme agora – e tanto “Pantera Negra” (que tem ótimas representações femininas em seu grupo principal) quanto a própria “Capitã Marvel” demoraram a ser vistos como um filão interessante, a despeito da 98437987ª versão do “Homem-Aranha”.

Fiz essa digressão toda para voltar a um assunto que liga as personagens citadas acima e a nossa Carol Danvers: enquanto Natasha Romanoff e Wanda Maximoff têm essa pecha de “cota mulher/sex symbol etc. e tal”, as residentes de Wakanda e a protagonista de “Capitã Marvel” são a prova de que dá para criar personagens femininas interessantes e tridimensionais sem precisar de roupas apertadas, closes estratégicos ou, no caso de Romanoff pré-Vingadores 2, o cansado princípio de Smurfette.

No caso de Danvers, o que se tem é uma mulher tão interessante quanto as citadas, mas sem um pingo de hiperssexualização. Com isso, o potencial inspirador da heroína é visto como uma oportunidade a ser explorada, ainda que não dê para ignorar que é mais fácil fazer isso quando estamos falando de uma piloto do Exército. Também dá para argumentar que não é um potencial tão desenvolvido quanto “Pantera Negra”, por exemplo, a despeito de poucos momentos – como o em que Fury, um homem, é considerado menos perigoso que um animal.

No fim das contas, “Capitã Marvel” reúne o que há de mais memorável em um filme da Marvel: uma boa protagonista, umas frases engraçadinhas aqui e ali, um sidekick que rouba a cena (no caso, dois) e uma trilha sonora pronta para ser hit nos streamings da vida. Ao mesmo tempo, esses elementos também colocam o filme no bolo de vários outros do estúdio: não é péssimo nem brilhante, mas diverte com competência.

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