Filmes e games possuem um relacionamento estranho, resultando em muito ódio de ambas as partes e pouquíssimos momentos de amor. Mas, nos últimos tempos, eles fizeram terapia de casal, começaram a acertar as suas diferenças e viram seu relacionamento evoluir.

Quando se fala em filmes baseados em games ou jogos inspirados pelo cinema, o resultado ao longo das décadas quase sempre se mostrou negativo. Porém, hoje em dia essa relação se tornou mais complexa. Vários games se inspiraram nas narrativas cinematográficas ou em determinados estilos de cinema para construírem as suas experiências. Um dos resultados desse processo é o fato de alguns games atualmente poderem ser considerados como obras de arte – sim, de verdade. E do outro lado, os filmes também estão trabalhando com conceitos dos games de forma inovadora.

Os primórdios: games baseados em filmes

No começo de tudo, havia uma simbiose muito forte entre as indústrias. O normal era um filme ter um game atrelado a ele na época do seu lançamento. Como uma criança dos anos 1980 eu mesmo joguei, perto do fim da década e no velho Nintendo 8-bits, títulos como Batman, baseado no filme de Tim Burton; Total Recall, que recriava vários momentos do sucesso O Vingador do Futuro, com Arnold Schwarzenegger; e o tosco (e cultuado atualmente) Friday the 13th, aquele com o Jason enorme e de roupa roxa – o desgraçado era praticamente invencível… Relembre um pouco da jogabilidade dessas pérolas nos vídeos abaixo:

Virou lenda a trajetória do game E.T., baseado no clássico de Steven Spielberg: era tão ruim que ajudou na falência da companhia Atari. O fracasso do jogo levou a empresa a jogar fora milhares de cartuchos no meio do deserto – essa história rendeu até um documentário, Atari: Game Over (2014), dirigido por Zak Penn, conhecido roteirista de Hollywood. O “jazigo” dos cartuchos de E.T. e outros títulos foi descoberto em 2013.

Esse exemplo, embora extremo, é típico da relação entre Hollywood e a indústria de games. Geralmente, quando uma produtora de games acerta um acordo de licenciamento com uma marca hollywoodiana, o filme já está em andamento e para que o jogo fique pronto na mesma época do lançamento nas salas, os desenvolvedores têm de correr. Além disso, esses licenciamentos eram (e ainda são) tão caros que a maior parte dos custos de produção do game acabavam indo para pagar a licença. A pressa e a falta de dinheiro levavam a produtos medíocres.

Angelina Jolie como Lara Croft em Tomb RaiderFilmes baseados em games

O outro lado da equação também não teve muito sucesso, de maneira geral. Na década de 1990, começaram a ser produzidos filmes baseados em games de sucesso e os espectadores de cinema foram submetidos a coisas como Super Mario Bros. (1993), considerado um dos piores filmes já feitos; Street Fighter: A Última Batalha (1994) com Jean-Claude Van Damme, e Mortal Kombat (1995). Este último até fez sucesso, rendendo uma continuação. E já no começo dos anos 2000, vieram os dois filmes Lara Croft: Tomb Raider, estrelados por Angelina Jolie no auge do seu super-estrelato.

Diretores de cinema tentam ajudar os games

Na última década, vimos os esforços genuínos de alguns cineastas para tentar produzir games de qualidade atrelados aos seus filmes. Porém, mesmo assim os resultados não foram muito satisfatórios. Os pioneiros foram os irmãos Wachowski, que ajudaram na concepção de Enter the Matrix (2003), lançado entre o segundo e o terceiro capítulos da trilogia Matrix. O objetivo era produzir um jogo que expandisse o universo da trilogia e contava até com cenas gravadas especialmente para ele, com a participação de atores dos filmes. Mesmo assim, o jogo decepcionou quando foi lançado.

Depois foi a vez de Peter Jackson trabalhar junto com a produtora Ubisoft para produzir o jogo baseado na sua versão de King Kong (2005). Mais recentemente, o perfeccionista James Cameron fez uso dos serviços da mesma Ubisoft para criar o jogo de Avatar (2009). Isso não impediu o jogo de representar o ponto mais baixo da experiência de Avatar na época em que foi lançado.

A evolução: games que se alimentam do cinema e vice-versa

Enquanto toda essa história acontecia, novas plataformas surgiram, com mais capacidade de processamento – Playstation, XBOX, Wii e computadores, entre outras, além do advento do multiplayer, que permitiu a jogadores se conectarem e jogarem online. E novas formas de pensar os jogos, com óbvias inspirações cinematográficas, começaram a dar frutos.

Em meados dos anos 1990 o produtor japonês Shinji Mikami concebeu Resident Evil na produtora Capcom. O jogo, que inaugurou o estilo survival horror (horror de sobrevivência), era visivelmente inspirado nos longas de zumbis do cineasta americano George Romero. Tanto que, anos depois, quando a Capcom e a produtora Constantin Films se uniram para criar a adaptação para o cinema de Resident Evil, Romero foi o primeiro cineasta a se envolver com o projeto. O pai dos mortos-vivos, no entanto, não chegou a um acordo com ambas as companhias e foi substituído pelo britânico Paul W. S. Anderson, o mesmo diretor de Mortal Kombat.

GTA - Grand Theft AutoAinda nos anos 1990 a produtora Rockstar iniciou a bem sucedida série Grand Theft Auto, cujos jogos impulsionaram a onda do “mundo aberto” e causaram controvérsias por serem considerados supostas apologias ao crime. A série Grand Theft Auto, ou GTA, é um dos maiores sucessos da história dos games, e suas tramas parodiam e/ou homenageiam as clássicas narrativas dos filmes policiais e de gângsteres – os trabalhos de Quentin Tarantino, Martin Scorsese e Michael Mann são fortes influências sobre os games da série.

A série GTA e seus bandidos fizeram tanto sucesso que algumas adaptações posteriores de filmes para os consoles seguiram seus passos, como Scarface: The World Is Yours (2006), uma espécie de “continuação” do filme estrelado por Al Pacino e dirigido por Brian De Palma; e The Godfather (2006), baseado no clássico O Poderoso Chefão (1972) de Francis Ford Coppola. Do elenco de Chefão, Marlon Brando, Robert Duvall, James Caan e Abe Vigoda participaram do game, dublando seus personagens – consta-se que a dublagem de Don Vito Corleone no jogo foi o último trabalho da carreira de Brando.

Esses projetos mostram como é possível transpor um filme para a mídia dos games de forma sofisticada e interessante. Outro notável exemplo é Ghostbusters (2009), que é, essencialmente, o Os Caça-Fantasmas 3 que nós nunca vimos no cinema – o game foi escrito por Dan Aykroyd e Harold Ramis e todos os atores dos filmes dublaram seus personagens no jogo, até mesmo o arredio Bill Murray.

Então, o que vemos hoje é um processo no qual as duas mídias se alimentam uma da outra, influenciando-se mutuamente ao invés de se canibalizarem visando o lucro fácil. A série Call of Duty frequentemente chama astros do cinema para dublar e, às vezes, emprestar a aparência para seus personagens. Atores como Gary Oldman, Kiefer Sutherland e, mais recentemente, Kevin Spacey, já trabalharam na franquia. Uncharted, a série de aventura da produtora Naugthy Dog, é uma atualização das aventuras de Indiana Jones – o projeto de filme baseado nos jogos continua vivo. E até a franquia Resident Evil também influenciou sua contraparte nos games: os jogos, antes voltados para o horror, passaram a ser mais orientados à ação nos seus últimos exemplares, quando os filmes estrelados por Milla Jovovich começaram a fazer bastante sucesso nas telas.

The Last of UsNos últimos anos, The Last of Us (2013) causou sensação e ganhou prêmios com sua trama apocalíptica e envolvente, melhor que a de muitos filmes do gênero – o filme deverá vir em breve, e há rumores de que pode ser estrelado pela atriz Maisie Williams, de Game of Thrones. E Alien: Isolation (2014) rompeu com a tradição de jogos ruins baseados na influente franquia de ficção científica e buscou inspiração no clássico Alien original dirigido por Ridley Scott. O resultado foi um game do estilo survival horror que tornou a icônica criação de H.R. Giger assustadora novamente.

Ambição narrativa

Um game como The Last of Us, embora não seja baseado em nenhum filme específico, deixa claro como a indústria e os criadores desses jogos hoje têm ambições narrativas capazes de rivalizar, se não superar, a de muitos filmes. O objetivo deles é contar uma história, e games podem fazer isso tão bem quanto o cinema.

Ao se jogar algo como The Last of Us, o jogador é capaz de se identificar com seus personagens de forma poderosa, e as reviravoltas na trama, o visual e a trilha são eminentemente cinematográficas – o critico de cinema Pablo Villaça até escreveu no blog dele sobre as qualidades narrativas de The Last of Us.

Detona Ralph, da DisneyJá do lado do cinema chegamos a um produto como Pixels. É um projeto que demonstra a evolução da simbiose percebida hoje entre ambas as mídias: um filme que não é baseado em nenhum game em particular, mas em “todos”, por assim dizer, e ainda por cima lança mão da boa e velha nostalgia pelos velhos jogos do início da indústria. Pixels parece seguir os passos da animação Detona Ralph (2012), outro projeto não apenas repleto de referências ao passado dos games, mas que era estrelado por personagens deles.

De fato, Detona Ralph é até o momento o melhor exemplo desta nova forma de se trabalhar com games em Hollywood. Melhor do que fazer um filme baseado num game, às pressas e sem cuidado, é pegar personagens e conceitos de games e integrá-los numa história nova, cinematográfica e que não desperte comparações injustas com a experiência do jogo. O resultado tem mais chances de agradar tanto a jogadores quanto a espectadores de cinema. Não há porque haver uma guerra entre essas duas turmas. Pena que tenha levado décadas para ambas as indústrias perceberem isso.