Coisa estranha: a silhueta de um homem grisalho, a linha do cabelo recuando, adorna um balde de pipoca. É Adam Driver como Enzo Ferrari, em uma ação de marketing curiosa: vender o novo filme de Michael Mann como um grande blockbuster para a garotada. Jogada inusitada, mas necessária em tempos de teias midiáticas e propriedades intelectuais. De que outra forma um filme de US$100 milhões poderia ter alguma chance? 

Completa essa jogada o fato de o filme estrear por aqui na chamada “Semana do Cinema”. Isso significa que os ingressos custarão meros R$12 durante os primeiros sete dias de exibição de “Ferrari” em terras brasileiras. O jogo hollywoodiano tem dessas anomalias: vez ou outra algum autor renomado ainda consegue se esgueirar pelo sistema. 

O autor renomado aqui é, já dissemos, Michael Mann, e suas digitais podem ser encontradas por toda a obra. Seu Enzo Ferrari é, portanto, o arquétipo do herói machão, romântico, meio démodé: um homem fora do seu tempo. Daí sua melancolia. 

Daí também que essa construção sentimental de Mann se encaixa perfeitamente com o temperamento operático dos italianos. Uma sequência em que diversos personagens assistem a uma ópera enquanto rememoram momentos uns com os outros tira a poesia dessa junção de sensibilidades. 

UM HOMEM FICANDO PARA TRÁS

O Ferrari vivido por Adam Driver está na mesma linha de Howard Hughes: a dos empresários aventureiros, esportistas, com ares de heróis das matinês. Homens intrépidos, ousados, viciados em adrenalina e velocidade. Velocidade, obstinação, ímpeto são todas coisas necessárias para vencer nos negócios, afinal de contas. 

Exceto que os tempos, como não podia deixar de ser, estão mudando. Homens como Ferrari estão ficando para trás. Um novo futuro se anuncia, comandado não por pilotos de corrida, mas por investidores e pelo capital global. Adapte-se ou morra. Enzo Ferrari não sabe existir de outra forma. Ele prefere seguir acelerando. 

Sua esposa, Laura, vivida aqui por Penélope Cruz, detesta-o. A recíproca é verdadeira. Mas Laura é sua sócia na montadora, fazer o quê… Fora que ela tem o mesmo temperamento que ele: é indomável, dura na queda, sabe negociar. O casamento dos dois nada mais é do que isso: uma sociedade. Suas preliminares são as discussões de negócios. 

Completa esse triângulo a Lina Lardi de Shailene Woodley, que aqui não se sai tão bem quanto seus companheiros de cena. A jovem atriz não consegue decidir entre o sotaque macarrônico adotado pelo resto do elenco e sua pronúncia nativa. O resultado acaba distraindo. De todo modo, é Lina quem cria Piero, filho bastardo de Enzo e candidato a herdeiro de seu império. 

Como a Scuderia Ferrari anda mal das pernas, resta a Enzo inscrever sua equipe na Mille Miglia, uma espécie de Corrida Maluca da vida real que, para a surpresa de ninguém, foi proibida pelo governo italiano pouco depois dos eventos retratados no filme. O drama da história vem todo dessa corrida: é preciso vencê-la para que a Ferrari sobreviva. 

CONCESSÕES DEMAIS?

A resolução final aponta menos para uma volta por cima de Ferrari, apesar da boa vontade das cartelas finais, e mais para uma espécie de destino trágico coletivo. Como se tivéssemos sido pegos boquiabertos, sem nem ao menos nos darmos conta do que nos atingiu, enquanto assistíamos maravilhados àquelas possantes máquinas. Como se esse fosse o resultado inevitável de nossa fascinação diante de homens que precisam correr, que precisam terraplanar tudo o que encontram. 

Mas há algo aqui que parece faltar, apesar de todas as marcas autorais. Seria pelo fato da cinematografia digital de Mann mostrar-se bem mais contida dessa vez, sem tantos floreios de estilo ou arroubos poéticos em forma de pixels? Pode ser. Isso faz falta, com certeza, mas a questão vai além. Afinal de contas, o que torna um carro Ferrari tão especial? E mais: o que torna um piloto da Scuderia tão diferente dos outros? 

Mann, que sempre remeteu a Hawks no modo como retrata as minúcias do profissionalismo estóico de seus heróis, parece ter se segurado demais dessa vez. Fruto das incontornáveis concessões necessárias para a feitura de um filme desse porte? Quem sabe.