O silêncio é aquilo que se cala, que não se comunica, não há identificação, impalpável. É a ausência do som, mas também falta da sensibilidade, simbiose e coesão entre os pares. O silêncio pode ser um mecanismo de defesa, o estado bruto da irracionalidade social que se transpõe ao sujeito em calar-se. A ausência de som, portanto, pode ser um resguardo. Ou simplesmente um esquecimento de quem se é por conta de uma convivência que sufoca a sua própria existência. A pessoa que se acostuma a ser alheia aos centros das atenções, acostumada a ser vista como um peso, ao fundo da sala e em total silêncio.

“A Menina Silenciosa” (The Quiet Girl) coloca em foco o silêncio como defesa, análise e libertação. Situado em uma pequena província ao sul da Irlanda no início dos anos 1980, o longa irlandês narra a história de Cáit (Catherine Clinch, um primor!), uma menina de poucas palavras, retraída e totalmente invisível na sua grande família que passa por necessidades com o sexto filho a caminho. Resta aos pais levá-la para passar uma temporada na casa de parentes distantes para diminuir este fardo.

Diferente do seu lar, com muito barulho e pessoas que esnobam da sua existência, no novo aconchego, ela conhece o casal de meia idade, Eibhlín e Seán (Carrie Crowley e Andrew Bennett, respectivamente), únicos moradores de uma fazenda de médio porte, casa confortável, limpa e organizada. Ao longo dos dias dentro do seu silêncio, ela descobre uma nova vertente da vida: há cuidado, há amor, há zelo, há fraternidade e compreensão, sensações que nunca tivera em seu local de origem.

DESCOBERTA DE UMA VIDA DE AFETO

O foco que Colm Bairéad coloca em sua direção entre o silêncio e o estado sensorial das descobertas dessa menina e do casal em ter uma criança/alguém para cuidar é de delicadeza acolhedora. O motivo que os leva a acolher Cáit (que sabemos aos poucos, mas, há indícios nas entrelinhas desde o início) coloca essa menina quieta, silenciosa e solitária no centro de um universo que ela nunca compreendera como seu, talvez nunca compreendesse se não tivesse a oportunidade de sair e sentir um outro mundo para além do físico, mas sentimental.

São os pequenos detalhes deste filme silencioso que o torna grandioso com a construção da relação de Cáit e o casal, seja na sequência em que conta o que descobriu, ela auxiliando nas tarefas domésticas e da fazenda, mas não como obrigação, sim, como parte daquele lar, ou quando ela resolve buscar água. Nestes momentos, você percebe que muito mais que palavras, as atitudes dela e do casal se engrandecem na interconexão. E a fotografia e palheta de cores, sempre amarelas e solares (em sua casa há um cinza pesado, como o ambiente) dão o tom desse clima de (re)descobertas.

Lembro agora do título de um dos ótimos álbuns da banda O Rappa, “O Silêncio Que Precede o Esporro” (2003), um título forte e memorável. Em um devaneio de uma análise minha, vejo esse esporro como um crescimento, a tônica do silêncio que ecoa dentro dessa garotinha que encontra sensibilidade e amor em meio ao desconhecido em que fora inserida. Um esporro de poder compreender seus sentimentos e ter o direito de externa-lo e sentir esse a reciprocidade, ainda que timidamente e gradualmente. Sensibilidade e confiança são a tônica dessa relação.

Ok, você pode não ter entendido nada dessa breve analogia, mas na minha cabeça fez total sentido e a cena final, de uma beleza e magnitude rara te fará, talvez, compreender o que disse. “A Menina Silenciosa” concorre ao Oscar de 2023 na categoria Melhor Filme Internacional.