J. A. Bayona (“O Impossível” e “Jurassic World”) se junta à Netflix para “A Sociedade da Neve”, um filme bombástico – com chances de se tornar a obra definitiva sobre a tragédia/milagre dos Andes. Falo, é claro, da queda do avião que transportava uma equipe uruguaia de Rugby no meio daquela gelada e desolada cordilheira. Que 16 pessoas tenham sobrevivido ao incidente seria algo notável sob quaisquer circunstâncias. Mais impressionante é que tenham suportado 71 dias de isolamento, fome, avalanches e morte.

Morte, porque, inicialmente, os 16 eram 45. Morte, porque, à noite, o frio era literalmente congelante. Por fim, o que talvez seja o aspecto mais infame da história: morte, porque, para vencer a fome assassina, apelaram para a antropofagia.  

Agora, tiremos o elefante branco da sala logo de cara: sim, eu comeria carne humana em uma situação de sobrevivência extrema sem pensar duas vezes. Agora que tratamos dessa questão, podemos nos deter sobre “A Sociedade da Neve”. Trata-se de um espetáculo muitíssimo do bem-feito. A começar pela queda do avião em si, capaz de fazer o mais racional dos espectadores questionar o porquê de viajarmos pelos ares em uma lata de sardinha a 300 Km/h. 

A sequência do acidente continua com uma impressionante maçaroca de aço retorcido e ossos quebrados, tudo salientado pelo design e pela mixagem de som. Aliás, é mesmo o som que merece destaque na produção de Bayona: o ruído do vento, por exemplo, é capaz de te fazer sentir na pele o frio cortante. 

No começo, os sobreviventes mantêm a mesma organização que tinham quando eram apenas uma equipe de Rugby viajando. O capitão dá as ordens, todos obedecem. Mas a cadeia de comando começa a rachar quando a fome teima em persistir depois de uma semana na neve. Logo, e aqui está o interesse de Bayona, os preceitos da moral também irão ruir. 

É curioso que, na vida real, a história dos sobreviventes tenha adquirido contornos religiosos – afinal de contas, estamos na América Latina. Assim, para justificar sua antropofagia, os heroicos uruguaios precisaram apelar para os rituais católicos de comunhão com Cristo como uma analogia para seus feitos. Em “A Sociedade da Neve”, entretanto, Bayona parece se interessar pelo modo como a cultura cristã sul-americana lentamente dá lugar ao pragmatismo. Segundo o filme, é do pragmatismo e da inventividade humana, e não da intervenção divina, que desponta o heroísmo.  

Ou em outras palavras: quando Deus falha, só sobra o humano.