“Talvez as pessoas do ramo da música não sejam bons parceiros ou bons pais”. Este diálogo presente em “Mesmo se nada der certo” parece um indicativo daquilo que encontramos em “Flora e Filho”, nova produção do irlandês John Carney. O diretor reitera temas presentes em sua filmografia e nos entrega um trabalho sóbrio, com músicas intimistas e personagens complexos e cativantes.    

Acompanhamos Flora (Eve Hewson), uma mãe solteira sobrevivendo a um divórcio e sustentando a família com bicos. Carney que costuma dar ênfase a relacionamentos amorosos de forma agridoce, provando que, às vezes o amor dura, mas às vezes magoa, aqui está mais preocupado em discutir o amor familiar e observar a relação entre mãe e filho (Orén Kinlan). O curioso é que este é um tema frequente em suas obras: a presença familiar e como esta se relaciona ao processo musical. O momento em que os personagens se encontram, no recorte que ele nos entrega, tem sempre muito a ver com os laços fraternais, mas nunca é seu foco como se apresenta neste projeto. Principalmente porque música e família estão tão entrelaçados em “Flora e Filho” que é difícil discutir um sem citar o outro.   

Sem ser um musical ou uma comédia romântica, temos um drama familiar. O diretor, que também assina o roteiro, se preocupa em construir o relacionamento dentro do núcleo familiar formado por uma mulher, que foi mãe na adolescência e ainda está aprendendo a ser mãe passados 14 anos. Logo, temos uma mulher que não apenas batalha pelo sustento, mas principalmente está batalhando para se encontrar dentro da maternidade. Vemos uma relação maternal crua, até um tanto naturalista, uma vez que mãe e filho se portam como se tivessem a mesma idade, mas a música oferece aos dois amor e redenção.  

Flora vs Eve 

 

Quem chama atenção, neste contexto, é Flora. Isso por ser uma personagem cativante no mesmo tom em que se mostra uma figura complexa. Ela é uma mulher desbocada, sincera, carismática, magnética e impressiona o quanto a música está presente em si, ainda que não consiga nomeá-la. Desde o primeiro quadro, fica nítido o quanto se movimenta em ritmo musical, respira música e a ama tanto a ponto de todos os seus interesses amorosos sejam homens músicos.    

Eve é tão atraente quanto a sua personagem. A fotografia de John Conroy (“Westworld”) a coloca sempre como a figura vivaz no quadro, sendo o ponto de cores quentes em um mar de personagens, paredes e objetos permeados de tonalidades frias. Assim como a mecha de tom claro, Flora irradia e incomoda, o que dá oportunidade para que Eve roube a cena e brilhe, mesmo em frames nos quais só ouvimos sua voz dando indicações para o filho. E mostra que é tão boa atriz quanto nos vocais, conseguindo dosar desejo, raiva e humor.   

Entre músicas e figuras complexas 

 

Como já foi dito, Carney é um diretor que costuma escrever interesses românticos sólidos, que conquistam o público como ocorreu em “Apenas uma Vez”, mas, com exceção de “Sing Street”, seus caminhos não se encontram no final. E é interessante como em “Flora e filho”, ele consegue trazer essa mesma construção, mas sem deixar o gosto agridoce de algo que poderia ser, mas não se concretizou. Neste sentido, a edição de Stephen O’Connell – parceiro do diretor em “Modern Love” – ameniza o sentimento de perda diante do relacionamento à distância. É sagaz a maneira como conseguem criar uma conexão entre o público e um casal que nunca se tocou ou se viu pessoalmente. Algo que fica de lição para os filmes que trabalharam relacionamentos a distância no período pandêmico.    

A trilha sonora, mais uma parceria do diretor com Gary Clark, exerce uma grande influência para a percepção da relação. As letras intimistas interpretadas por Hewson e Joseph Gordon-Levitt não deixam de nos tocar de alguma forma e produzir a catarse que esteve por tanto tempo adormecida dentro de Flora. A narrativa é construída musicalmente, contemplamos os personagens passarem da raiva para o desejo, de gargalhadas para as lágrimas e ao amor; ainda que não haja canções marcantes como em seus projetos anteriores, sendo compensado, no entanto, pelas composições de seus personagens tão comuns e tão complexos.    

Gordon-Levitt solta a voz e prova que também pode ser um personagem clássico do universo de John Carney com seu violão, sentimentos de incompletude e encontrando em uma parceira desafiadora e solar a inspiração e motivação para deixar a música fluir. Carney e Clark entregam um filme que se encontra entre os personagens clássicos do diretor-autor e a música de sintetizadores. Flora está entre as duas percepções.    

O que mais gosto em “Flora e filho” são as  referências às produções anteriores de Carney como a visita à loja de instrumentos, a música ofertada como presente, adolescentes desajustados socialmente que encontram na música à redenção e, é claro, o quanto as canções intimistas estão para além das discussões presentes nos filme. Carney prova – mais uma vez – o quanto suas narrativas tocam e como há poder na arte para transformar. Nada como um filme dele para oferecer um afago em tempos árduos.