Certos filmes envolvem o espectador com tramas bem desenvolvidas, deixando-nos mais e mais ansiosos a cada virada da história; outros, apresentam personagens tão cativantes e genuínos que é impossível que não nos afeiçoemos por eles. Mas existe também uma categoria especial de filmes: os que suscitam em nós um estado de tédio tal que nos obriga, já derrotados e submissos, a simplesmente permanecer na sala escura, enquanto uma imagem sucede a outra na frente dos nossos olhos rumo ao esquecimento. “Águas Selvagens” é um desses filmes.

O filme chega até nós como uma coprodução entre Brasil e Argentina. O elenco, com personagens que falam em português e espanhol uns com os outros, conta também com atores uruguaios e, é claro, brasileiros. O imaginário popular, como sabemos, diz que os hermanos são nossos rivais por natureza. A julgar pelos papéis oferecidos para as pobres atrizes brasileiras que participaram do filme, talvez isso seja verdade.

“Águas Selvagens” nos apresenta ao investigador Lúcio Gualtieri (o uruguaio Roberto Birindelli), que deixa Buenos Aires para solucionar um crime na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Naturalmente, no que diz respeito a lugares exóticos e subdesenvolvidos, a mata exuberante esconde segredos sombrios e Lúcio precisa transitar em um submundo que envolve prostituição, tráfico humano e abuso infantil. Tudo isso, é claro, enquanto encara demônios pessoais e se envolve com uma mulher misteriosa, Rita (Mayana Neiva).

Zzzzz…

O grande cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul (“Tio Boonmee”) já expressou o desejo de que o público possa adormecer nas sessões de seus filmes, de que o ato de sonhar se confunda com o de assistir às imagens na tela grande. Em Apichatpong, o “tédio” (termo dúbio, já que suas imagens sempre nos estimulam) é a condição para uma experiência criativa extremamente recompensadora. Sim, há tédio em “Águas Selvagens”, mas de um tipo diferente: o filme sequer tem a consideração necessária com o espectador para fazê-lo dormir. É tudo passável, desinteressado.

Tome Rita como exemplo, vivida pela brasileira Mayana Neiva (da melhor maneira que a atriz pode). A plot insiste que um romance floresça entre ela e Lúcio, mas o filme não se preocupa em criar qualquer tipo de credibilidade (ou química, ou interesse…) para a relação.

Na verdade, Rita conhece Lúcio em uma situação bastante comprometedora, o suficiente para que nenhuma mulher em sã consciência topasse passar dez segundos no mesmo recinto que esse cara; Rita, por outro lado, se limita apenas a fazer uma piadinha, e logo os dois estão transando no quarto de hotel do sujeito. A pobre Mayana Neiva não tem culpa alguma aqui – tampouco as brasileiras Leona Cavalli e Allana Lopes, extremamente mal-servidas com suas personagens. Deve ser muito difícil topar se expor em um filme que resulta tão inepto quanto este.

Rumo ao esquecimento

Eu saí do cinema confuso em relação a certas maquinações da trama, com a memória tão nebulosa quanto a de quem sai de uma bebedeira. “Águas Selvagens” é realmente tão rocambolesco assim? Não, mas quando seu thriller não tem construção de suspense ou progressão dramática, é impossível acompanhar o que quer que seja. Aqui, os realizadores escolhem mover a trama de maneira praticamente arbitrária – eles não se importam com a história que contam, então por que você deveria?

O Lúcio Gualtieri de Birindelli passa de uma interna sem graça a outra, onde trava conversas desinteressantes com outros personagens desinteressantes. Tudo isso é envelopado pela lisura asquerosa da cinematografia digital. É um filme que tenta ser sujo, mas o digital rouba a imagem de qualquer textura possível, qualquer ambiguidade – enfim, de qualquer sujeira. Sobram os piores tiques desse tipo de cinematografia, com direito à paleta cinzenta que torna tudo um borrão homogêneo na tela – sem falar nas tomadas de drone, que parecem ter saído diretamente de um canal de viagens do YouTube.

E ainda nem comentamos sobre como Lúcio é construído: “Águas Selvagens” nos leva a crer, logo na primeira cena, que nosso protagonista é um pedófilo. Eu suponho que os realizadores pensam estar construindo algum tipo de tema – “A Corrupção dos Inocentes”, “A Infância Perdida” ou qualquer outra baboseira genérica que eu poderia improvisar, não estivesse tão cansado de pensar sobre esse filme. Quando ninguém na produção parece se importar muito com o que está fazendo, de que adianta?

Já para o espectador, resta o consolo de saber que ele nunca mais se lembrará de nada que acontece em “Águas Selvagens”. Talvez seja um consolo para os realizadores, também: o filme é passável demais para sequer merecer a revolta de quem o assiste.

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