Quando os créditos começam a rodar ao fim da nova versão de “Amor, Sublime Amor”, uma dedicatória aparece. “Para meu pai”. Não é de se surpreender algo assim em um filme de Steven Spielberg – afinal, a carreira do diretor é permeada por personagens em conflito com a presença ou ausência paterna. Porém, essas palavras tiveram um tom diferente para esta que vos escreve. Estamos falando de um remake ou uma nova adaptação (como preferirem) de um clássico da cultura norte-americana que fala sobre identidade, sobre lutar por um espaço na América sonhada que vira cenário de pesadelo. Tem coisa mais Spielberg do que essa reverência ao passado com um olhar de longe pueril e, de perto, cheio de particularidades? 

A história shakespeariana no centro de “Amor, Sublime Amor” nos leva a Nova York dos anos 1950, onde gangues disputam espaço e a comunidade porto-riquenha busca oportunidades. Esse é o cenário para a Verona dos compositores Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, do coreógrafo Jerome Robbins e do roteirista Arthur Laurents, e agora do roteirista Tony Kushner, que teve a incumbência de adaptar a nova versão cinematográfica. Nesse contexto, Romeu é Tony e Julieta é Maria. Ele, polaco-americano. Ela, porto-riquenha recém-chegada à cidade. Entre eles, um mundo de diferenças e a guerra entre os Montecchio e os Capuleto, que aqui são as gangues rivais Jets e Sharks, respectivamente. 

SPIELBERG CINÉFILO 

É difícil não fazer nenhuma comparação com o filme de 1961 dirigido por Robert Wise e pelo já citado Jerome Robbins. Vencedor de dez Oscars, aquele “Amor, Sublime Amor” é um dos títulos mais amados pelos fãs de musicais e, ainda hoje, encanta pelas coreografias e planos cheios de vida, e, claro, pelo trabalho de Sondheim e Bernstein em canções que a mais pequena das vozes nunca conseguiria entoar. 

Logo, é bonito que uma nova leitura dessa história venha pela batuta de Steven Spielberg, diretor que sempre reconheceu os grandes filmes que lhe formaram, seja com blockbusters como “Jurassic Park” e a saga Indiana Jones, seja com obras sobre histórias reais, como “A Lista de Schindler“O Resgate do Soldado Ryan”. Ao assistir “Amor, Sublime Amor”, consigo reconhecer o menino que assistia a filmes como “O Maior Espetáculo da Terra” e “Lawrence da Arábia” com o sonho de um dia poder ser um pouco Cecil B. DeMille ou David Lean. Talvez porque, em uma escala diferente, esse cinemão ainda tenha o poder de me comover em toda a sua deliciosa megalomania (ainda que eu esteja em lado oposto ao de Spielberg em relação a ‘O Maior Espetáculo…’, mas isso é assunto para outro dia). 

EXPERIÊNCIA ENRIQUECIDA 

Spielberg conseguirá repetir o clássico dos anos 1960 e levar 10 Oscars?

E é nesse ritmo que cheguei ao cinema para assistir ao novo trabalho do homem. Fato que a experiência foi enriquecida porque tinha ao meu lado duas amigas apaixonadas por Sondheim – e agora viúvas com a morte recente do compositor, praticamente às vésperas do lançamento do filme. Mas, sem mais delongas. Este “Amor, Sublime Amor” equilibra homenagens ao filme que completou 60 anos em 2021. Algumas são discretas, como o vestido da Maria de Rachel Zegler no baile, remetendo ao da Maria de Natalie Wood; outras, mais explícitas, como a presença de Rita Moreno. 

A Anita do musical dirigido por Wise e Robbins aparece aqui em uma personagem não apenas correspondente ao Doc do clássico de 1961, mas também relacionada a ele. Sua Valentina é acalentadora e a ela é reservada uma performance de “Somewhere”, um dos pontos altos do musical. Na voz de Rita, a canção carrega mais história do que esperança, e fica difícil não se emocionar com a resignação e o medo impressos em cada palavra que sai de sua boca. E vê-la lado a lado com Ariana DeBose, a Anita da vez, tem um tom mais amargo do que da tradicional passagem de bastão que já tem me cansado nessas reedições de franquias que vemos por aí. 

O tom vibrante ainda existe, mas não oculta as sombras daquele trecho de Estados Unidos. “America”, por exemplo, surge em uma performance solar à primeira vista, mas marcada pelos contrastes das visões de Anita e Bernardo sobre o tal sonho americano. “I Feel Pretty” aparece como um delírio de uma Maria que parece não entender que está vivendo no meio de uma guerra. A reprise de “Tonight” mistura sacro e profano e as expectativas dos personagens principais com mais veemência que antes, enquanto “One Hand, One Heart” preserva a inocência do casal principal ao mesmo tempo em que quase antevê a tragédia que vai envolvê-los. 

O PRAZER DE SONHAR 

Rachel Zegler tenta nomeação não obtida por Natalie Wood no longa original.

E enquanto toda essa ação toda acontece, ganhamos um espetáculo visual, cortesia de Spielberg e de seu fiel escudeiro, o diretor de fotografia Janusz Kaminski. Ainda que as performances mais prolongadas de George Chakiris, Russ Tamblyn e companhia façam falta, a Nova York caótica da releitura de 2021 é mais palpável, assim como as tensões entre os Jets e os Sharks. A exceção fica por conta da performance de “Cool”, que perde com um desempenho de Ansel Elgort que não me cativou nem um pouco. Em compensação, ver Mike Faist tomar o papel de Riff para si é impressionante, assim como David Alvarez, que cria um Bernardo forjado no machismo do patriarcado e 100% leal ao que defende. 

Só que a estrela mesmo do filme é Ariana DeBose, com uma Anita carregada por dores, mas acolhedora o suficiente para entender o dilema de Maria. Os três comandam a tela também quando performam os números musicais, já que, além de exímios dançarinos, todos cantam lindamente – DeBose, em especial, nos destrói ao entoar “A Boy Like That” com toda a carga emocional não apenas do que a personagem acabou de viver, mas de toda uma existência sendo mulher negra e latina. Ah, e se o filme de 1961 tinha um grande problema com atores brancos interpretando latinos, o de Spielberg se encarrega em corrigir isso. 

No fim das contas, este “Amor, Sublime Amor” pode até não querer inventar a roda, mas nos leva a um tempo em que ela era constantemente inventada, ainda que nos padrões de um sistema de estúdio com critérios bem questionáveis. A dedicatória de Spielberg ao pai é também uma dedicatória dele ao público, que tem acompanhado suas histórias pelos últimos 50 anos. É um pouco da nossa identidade enquanto cinéfilos ou cinéfilas que está ali na tela. O legal do cinema é que ele toca cada pessoa de uma forma. Para mim, foi lembrar que é bom sonhar um pouco, que é bom se jogar numa sala escura com outros estranhos (depois de tanto tempo sem viver isso) e que é bom se encantar com uma nova obra do mesmo homem que nos fez andar ao lado de dinossauros e fugir em uma bicicleta lua afora. 

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