Entre 2007 a 2015, Matthew Vaughn surgiu como uma das mentes criativas do entretenimento norte-americano. Neste período, ele comandou as melhores sátiras subversivas ao trabalhar os elementos de fantasia a partir da violência cartunesca com o humor politicamente incorreto nos filmes de super-heróis em “Kick-Ass” e no primeiro “Kingsman”, sem contar ter feito a segunda melhor adaptação dos mutantes da Marvel, “X-Men” Primeira Classe”, perdendo apenas para “X-Men 2” de Bryan Singer. 

A partir daí, sua carreira foi só ladeira abaixo, enterrando a sua própria franquia “Kingsman” com duas sequências irregulares e bem distantes da diversão proporcionada pelo material original. “Argylle – O Superespião” enfatiza o seu momento ruim, em uma obra de espionagem com o selo de qualidade do chamado “filme algoritmo” que você assiste e, na semana seguinte, já o esqueceu por completo.

A carismática Bryce Dallas Howard é a escritora Elly Conway, uma renomada autora de romances de espionagem que acompanham as aventuras de um agente secreto Argylle (Henry Cavill). Em uma viagem para encontrar os pais, ela descobre que as tramas dos seus livros romperam a barreira da ficção com a realidade e se vê envolvida em uma teia conspiratória global, contando com a ajuda de um espião verdadeiro, Aidan (Sam Rockwell), para desvendá-la.

Um desperdício de metalinguagem e dos conceitos de espionagem

“Argylle” seria não apenas a reconciliação de Vaughn com o tipo de filme que ele fez no início da carreira como também um espaço para ele se auto reinventar no próprio subgênero que ajudou a consolidar na última década. A trama em si apresenta uma metalinguagem inusitada e promissora por unir os conceitos dos filmes de espionagem com os elementos sobre a criação artística e o bloqueio criativo a lá Charlie Kaufman e o seu “Adaptação” ao trazer uma história que ultrapassa as páginas da fantasia para o real dentro do consciente humano. 

Uma pena porque a primeira meia hora é divertida ao trabalhar as raízes metalinguísticas. Neste aspecto, “Argylle” ganha uma boa dinâmica e espirituosidade em explorar as temáticas e as divisões entre os dois mundos que coexistem no enredo. Fica claro que o universo literário criado por Elly é muito mais envolvente de se acompanhar quando se foca nas ações de Argylle e seus parceiros (John Cena e a cantora Dua Lipa)

Somente quando o filme mergulha na sua história de espionagem e conspiração é que Vaughn mete os pés pelas mãos, já que a realidade de Elly é bem menos interessante na sua narrativa em comparação a outra, e pior, ele esquece de criar uma conexão entre os dois pontos em questão e resolve se dedicar apenas a um segmento, no caso o segundo (sua zona de conforto) esquecendo por completo da realidade literária.

Reviravoltas cansativas e um texto pouco inspirado na diversão

A pretensão do roteiro de se achar mais complexo do que a trama tem para oferecer também afeta “Argylle”. Isso apenas enche o filme com reviravoltas excessivas e transmitir uma ideia de esperteza ao público, mas que não existe na prática em decorrência do vazio de ideias e conceitos. E quando um filme de Vaughn passa longe da diversão, ele tem pouco a proporcionar. 

As várias surpresas que o roteiro de Jason Fuchs vai perfilando simplesmente desconectam o público da história central. O número de descobertas que Elle se dá conta em relação ao seu passado se torna um grande teste de paciência ao espectador, deixando tudo exagerado, desconexo e cansativo. 

A impressão é que falta um toque criativo ou original de apresentar algo substancial ao enredo conspiratório e aos mistérios que derivam dele. Quem é mais das antigas com certeza vai lembrar de “Tudo por uma Esmeralda”, de Robert Zemeckis, em que o filme tira a maioria das suas ideias de metalinguagem, mas que não consegue traduzir um terço da divertida ação-comédia do filme oitentista. 

Nem mesmo o estilo subversivo e imaturo de Vaughn, que funcionou muito bem no primeiro “Kingsman” dentro da proposta de entretenimento despretensioso, consegue ser efetivo na sua comédia galhofa e corporal, onde as próprias tiradas de humor pastiche geram risadas tímidas no espectador. 

Visual pouco convincente

Tudo isso vem acompanhado de um visual preguiçoso ao extremo. Os efeitos visuais apresentam um desleixo ou falta de cuidado na sua execução, com uma saturação excessiva nos elementos visuais dando uma conotação bem fake aos cenários que permeiam as cenas de ação. Sabe aquela cena divertida da igreja no primeiro “Kingsman”? Pois é, não há nenhuma deste naipe aqui, com set-pieces explosivos que produzem mais bocejo no público do que fascínio devido a uma coreografia confusa ou nada convincente na sua execução. O que não deixa de ser decepcionante para uma produção de US$ 200 milhões oferecer uma tecnologia CGI inconsistente que afeta a experiência visual imersiva. 

Pelo menos entre tantas frustrações, o elenco ajuda a contornar essas problemáticas mesmo com personagens mal caracterizados.  A química entre Bryce e Rockwell funciona; Bryan Cranston diverte como o vilão histriônico de um filme de James Bond; as participações reduzidas de Cavill, Cena e Dua Lipa dão um sopro de leveza. Até mesmo o gatinho contribui para dar um grau agradável a um filme desorganizado. 

No geral, é triste dizer isso de “Argylle – O Superespião” ainda mais para quem se divertiu com os filmes de Matthew Vaughn na década passada. O novo longa tem sim seus momentos bacanas, mas jamais decola. Erra a mão no humor, cansa na estrutura narrativa e não encontra o equilíbrio entre o filme sério e o nonsense puro. Não deixa de ser estranho um filme que propaga ser inovador ou uma sátira irreverente ao processo de criação entre a fantasia e o real acabe se tornando aquilo que repudia ao se render a vários clichês e reviravoltas repletas de conveniências narrativas. 

Falta aquela ironia britânica dos primeiros trabalhos do cineasta – e incluo aí “Nem Tudo é o Que Parece” e “Stardust” – além da inteligência, charme e elegância que ele tinha para brincar com o suspense e mistério dos seus filmes. Sem inventividade no humor visual e narrativo, “Argylle” tem um senso de escala cinematográfica engessada que decepciona no processo de autoconsciência e na própria subversão metalinguística ao subgênero que abraça. É um protótipo “algoritmo” de espionagem que poderia ser produzido pela Netflix. Talvez, seja isso que Vaughn esteja buscando para o futuro da sua carreira: reivindicar um espaço no streaming.