Uma das razões do sentimento de culpa ser tão angustiante é a dificuldade em dividi-lo. Primeiro contar para alguém e segundo realmente sentir que houve um compartilhamento. “Drive My Car” parte dessa dificuldade para construir sua narrativa, sempre em movimento, um eterno seguir em frente que parece sem fim.

Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um ator e diretor de teatro que viaja para Hiroshima, onde comandará uma peça em um festival. Lá, ele é informado de que não poderá dirigir enquanto estiver trabalhando na obra e terá uma motorista escolhida pela organização do evento, a jovem lacônica Misaki (Toko Miura).

CONDUÇÃO DO OUTRO

“Drive My Car” preza por uma detalhada decupagem, capaz de solidificar um roteiro que vai sempre adicionando novos conflitos. Há uma precisão rítmica exemplar, conduzindo-nos pelos caminhos do enredo como Misaki conduz Hafuku. É primordial para o filme essa sensação de passagem temporal e mobilidade espacial sem grandes entraves, prezando por uma direção que permeia o dinâmico e o contemplativo.

Porém, por mais que o filme busque um certo distanciamento de seus personagens, quase perdidos naquele universo, há sempre uma empreitada por autoconhecimento e empatia que mobiliza boa parte dos sentimentos evocados pela obra. Tanto Hafuku quanto Misaki precisam lidar com acontecimentos passados que os perseguem.

Ambos os personagens possuem uma apatia externa que os impossibilita de interagirem com o mundo para além de necessidades profissionais – ele como diretor e ela como motorista. Interessante notar que seus ofícios envolvem a condução de outras pessoas.

Embora a jovem no início apenas siga as ordens de Hafuku, logo a jornada dos dois se torna simbiótica. O carro se transforma em um lugar seguro para ambos, um espaço onde o tempo segue outras leis e a pressão que do lado de fora os oprime, dentro do automóvel os liberta.

O DESAGUAR NA ESPERANÇA

É preciso destacar os diálogos de “Drive My Car”. As peças dirigidas pelo protagonista misturam idiomas; cada ator fala em sua língua nativa (temos atores japoneses, chineses, coreanos). Essa dinâmica logicamente exige um entrosamento muito grande e extremo cuidado para retornar a fala do companheiro em cena. As conversas no filme seguem um tom parecido. Os personagens, principalmente os protagonistas, falam como se procurassem um par, um retorno que os indique que foram compreendidos.

Hafuku carrega suas dúvidas sobre o passado da mulher, Misaki carrega suas dúvidas sobre si mesma e o próprio diretor. Ambos falam desesperançosos, intraduzíveis. Os planos e contra-planos executados pelo diretor Ryusuke Hamaguchi buscam quase sempre deixar apenas um personagem em tela.

Essa tendência é quebrada em alguns diálogos entre os protagonistas, com maior destaque para aquele que sacramenta o início da amizade entre os dois. Um plano aberto, uma longa conversa, o mar correndo ao fundo. Ambos finalmente encontram uma possibilidade de compartilhamento.

A preocupação de Hamaguchi em não deixar Hafuku e Misaki ao léu, retirar de personagens “frios” o caminho de solidão que os acompanha, é primordial para o sentimento de empatia criado pelo filme. A estrada sempre continua para os dois, as dúvidas são pouco sanadas, mas a viagem passa a ser o principal. Mais que a partida ou a chegada. “Drive My Car” é corajoso ao passear por tantos sentimentos e escolher desaguar em esperança.

MAIS CRÍTICAS NO CINE SET: