Monteiro Lobato disse que talento não pede passagem, impõe-se ao mundo. É um ponto de vista que se encaixa muito bem ao mexicano Guillermo Del Toro, um desses contadores de história cinematográficas por excelência – poucos no cinema fantástico contemporâneo são ótimos artesões como ele – que faz isso com uma naturalidade absurda, ao traduzir com grande paixão, seus universos onde criaturas e seres humanos se cruzam e se desafiam apenas para conhecerem a sua real natureza. 

Para ele, vencer os medos e atingir a maturidade, é necessário compreender as raízes das emoções e sombras do inconsciente, materializado em seus filmes, através de criaturas fantásticas que habitam nossa imaginação. Lidar com estes monstros internos – nos filmes seres físicos e excêntricos de um universo muito particular – é o último passo para aceitação de si mesmo ou então encarar o seu próprio caminho rumo à monstruosidade. 

O Beco do Pesadelo, seu novo trabalho quatro anos depois de lacrar como melhor diretor no Oscar pela A Forma da Água (e se juntar a Santa Trindade mexicana oscarizada em Hollywood ao lado dos compatriotas Alejandro González Iñárritu e Alfonso Cuarón) é praticamente sobre isso: um conto moral sobre os interiores perversos da conduta humana. 

Baseado no livro noir “O Beco das Ilusões Perdidas”, de William Lindsay Gresham, e refilmagem de “O Beco das Almas Perdidas”, de Edmund Goulding, lançado na década de 1940, a obra de Del Toro (que co-escreveu o roteiro ao lado de Kim Morgan) mostra Stanton Carlisle (Bradley Cooper), um sujeito ambicioso e de passado misterioso que se junta a um parque de diversões itinerante onde aprende as técnicas mentalistas de manipular as pessoas. Depois de partir para Nova York para aplicar golpes na elite local como um falso médium, ele se envolve com uma psiquiatra misteriosa (Cate Blanchett) que o levará a confrontar o seu passado e entrar em uma jornada moral. 

AMBIGUIDADE TÍPICA DO NOIR

O Beco do Pesadelo mantém aceso o amor do cineasta pela arte cinematográfica, principalmente pela Era de Ouro de Hollywood e que se faz presente aqui pelo autêntico cinema noir americano filmado. É verdade que, em comparação aos seus outros trabalhos, há pouco resquício da sua assinatura visual no campo fantasmagórico e fantasioso neste projeto, ainda que não deixe de ser esteticamente belo a maneira com que o cineasta captura a atmosfera noir, adicionando personalidade para os dois ambientes da trajetória de Stanton, primeiro com a fotografia sombria que constrói a aura de mistério em torno da feira de bizarrices e depois com os filtros dourados e azuis na maneira em que filma o espetáculo refinado da alta sociedade americana – ainda que, no terço final fatalista, Del Toro se debruce em sombras ameaçadoras para retratar os momentos em que o protagonista é confrontado pelas suas escolhas ambiciosas. 

Se na forma temos um trabalho mais contido – é talvez a fantasia menos fantasiosa da carreira do mexicano – flertando com o cinema clássico, na substância temos Del Toro com a essência das suas obsessões sobre a moral humana e da presença da fábula perversa tão comum nos seus outros trabalhos. 

O filme é dividido em dois atos: o primeiro no parque de diversões com Stanton aprendendo as regras do jogo de um mundo cruel dentro de um cenário marcado por figuras bizarras e estranhas na qual Del Toro encontra-se muito à vontade para filmar a sua paixão pelo lado decrépito do ser humano com elementos de releitura do clássico Monstros (Freaks), de Ted Browning. Já no segundo ato temos um noir na sua pura essência artesanal com direito a femme fatale, dilemas morais e cenários mergulhados em escuridão. 

O curioso é que nestes dois segmentos não há nada de fantástico ou habitado por monstros de outros mundos. Diferente dos seus outros projetos, o encantamento a ser debatido pelo mexicano aqui são as aglutinações das falhas humanas, os monstros interiores corrompidos pelo mundo urbano e o insaciável desejo humano de manipular para ter acesso ao poder. 

Se trata de um noir clássico, imersivo na sua história de até onde a ganância de um sujeito pode levar. No fundo, Del Toro mostra a ascensão e queda de Carlisle a partir de um destino selado na degradação oriunda da corrupção moral. Seria ele um homem desprezível pela sua conduta amoral? Ou tudo não passa de um sujeito que sempre buscou validar os seus desejos para fugir dos seus demônios interiores gerados pela sua infância traumática? Como um bom conto noir sobre o custo da ambição, estas ambiguidades são deixadas para a intepretação do próprio espectador. 

O PODER DAS FÁBULAS MORAIS

Claro que Beco do Pesadelo tem ressalvas que diminuem a sua apreciação. É um filme MUITO longo, cuja narrativa lenta, deixa a sensação inevitável de que os dois atos não dialogam muito bem entre si. É como se fossem dois filmes diferentes. O ato do circo, apesar de ser tão bem filmado, de uma construção elegantíssima na transição entre o filme de fantasia e horror, não impede o sentimento de que o cineasta se alonga demais naquele núcleo, inclusive o mistério noir (em relação ao passado do protagonista) que ele elabora sofre por esta quebra de ritmo no segundo ato. 

Essa situação, pelo menos, encontra um fiel da balança no ótimo elenco, recheado de nomes do primeiro time de Hollywood, alguns até em pequenas participações. A dinâmica entre Cooper e Blanchett funciona muito bem porque os dois formam um senhor casal dentro da perspectiva noir. 

Ele se destaca numa interpretação bem consistente, despertando os sentimentos exatos entre vulnerabilidade e a repulsa de Stanton. Ela, por sua vez, reproduz a performance clássica da femme fatale com uma dissimulação que, apesar de dar a impressão de soar forçada, casa com seu parceiro de cena por ser oposto da conduta deste. Vale destacar também o casal coadjuvante de Toni Collette e David Strathairn, este último um ator geralmente subestimado, mas que está soberbo como um mentalista alcoólatra.  

É estranho dizer isso, mas ao final de O Beco do Pesadelo tive a sensação de que é um dos filmes que melhor trafega pelo cinema pessoal de Del Toro ao lado de O Labirinto de Fauno, apesar das claras diferenças visuais e na exploração de temáticas entre os dois. Só que ambos dialogam através de pequenos refúgios na construção de seus comentários sociais e psicológicos sobre a ambição moral que rege o ser humano. Não é um filme realmente especial, mas evidencia o poder das fábulas morais necessitam ter para gerarem reflexão.

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