Para assistir “Gêmeas – Mórbida Semelhança” optei por compreender primeiro o terreno que estava adentrando. A série da Prime Vídeo lançada em abril é um remake do excelente “Gêmeos – Mórbida Semelhança” do genial David Cronenberg, como já dito aqui. O mundo mudou bastante desde 1987, quando o filme foi lançado, embora alguns tabus sigam firmes na sociedade, portanto, mudar o gênero dos protagonistas é uma bem-vinda ideia. Sai de cena os homens vividos por Jeremy Irons, entrando no jogo a oscarizada Rachel Weisz.

Assinado por Aline Birch (“Normal People”, 2020 e a badalada “Succession”, 2018-2023 da HBO), a minissérie de seis episódios mantém o clima mórbido, soturno e com ares de thriller psicológico do filme. O caldo engrossa com questões sociais muito pertinentes na atualidade como racismo cordial, racismo parental (a cena do desdém de outra médica com uma paciente negra é cruel), sistema médico ruim e parcial, a desumanização dos corpos das mulheres em um momento feliz e vulnerável da gravidez ao parto, os ricos excêntricos em suas bolhas sociais que vivem pelo lucro e ridicularização da vida que não esteja inserida nesta bolha, entre outras camadas.

Entretanto, o que me incomoda na assinatura de Birch e os demais colaboradores é que eles jogam esses temas muito mais como interpretação do espectador do que um desenvolvimento sólido. Há muita coisa envolvida e acontecendo ao mesmo tempo e todas elas não são desenvolvidas de uma maneira crível. Um exemplo? A emprega da dupla Greta, vivida por Poppy Liu que, entre uma arrumação e outra – sempre vestida como se estivess indo para uma rave – colhe objetos delas para um objetivo importante para ela, mas qual a necessidade? Como as Mantle estão inseridas no seu passado? A inserção dos pais delas também não diz muito ao que veio a não ser uma depressão pós-parto da mãe e nada além disso. Fillers para rechear um texto raso. A sua nomenclatura entre fotografia e tensão psicológica remente a obras primas como “Hannibal” (2013-2015) e “House of Cards” (2013-2018) de segunda categoria.

WEISZ BRILHA EM MEIO AO CARICATO

O grande destaque de “Gêmeas – Mórbida Semelhança” aqui é mesmo Rachel Weisz, assombrosa no papel das gêmeas Beverly e Elliot Mantle. Simplesmente não dá para distinguir uma da outra tão é a competência da atriz, o olhar, o semblante, tudo muda. Mas há um porém: se no filme, Elliot era um cara charmoso, galante e seguro, aqui, Elliot ganha traços vilanescos, mas não passa de uma mulher mimada e chata para atrair a atenção de todos, principalmente de Beverly, sua outra parte, mais discreta e objetiva.

Essa co-dependência das irmãs imprime medo, angústia e incômodo. É uma obsessão de posse (Elliot > Beverly), de estar no controle, ela precisa ser amada com devoção e só quem o pode fazer é a sua outra metade, aquela concebida junto a ela.

Alguns diálogos soam tão caricatos quanto vergonhosos, como no jantar em que estão reunidos os magnatas e as gêmeas Mantle, a síntese de uma torta de climão tão indigesta quanto desnecessária. E, assim como no filme, a cor vermelha é onipresente colaborando com esse ar vampiresco de sugar a energia, as duas se sugam e de alguma forma precisam sugar outras pessoas para se renovar para continuar nesse ciclo vicioso.

PATOLOGIA SÁDICA

Contudo, há um momento importante em um devaneio de Beverly em que ela volta ao passado e vislumbra o início da violência obstétrica que, para chegar aonde chegou aos dias atuais, teve suas cobaias. Sem surpresas, mulheres negras e escravizadas mutiladas e violadas em nome da ciência, da medicina e de um bem maior.

“O sangue está em suas mãos”, a escravizada diz no sonho de Beverly. E continua até hoje. Eis aqui a única crítica construtiva e bem articulada de “Gêmeas – Mórbida Semelhança”sobre as diversas violências que as mulheres sofreram e sofrem até hoje em um momento que deveria ser de regozijo.

Por entre os conflitos éticos, morais, de personalidade, familiar e tudo que envolve lucro e poder, a intemperança desenfreada das gêmeas pela dependência e do status nada mais é que um relacionamento abusivo. Trocando em miúdos, uma patologia sádica.