Voltamos ao mundo de gelo e fogo! 

Não poderia estar tão feliz em dizer isso, ainda mais observando a estréia sólida e com pé direito feita por Ryan Condall (“Rampage”), responsável por esse retorno a Westeros, em “House of the Dragon”. O primeiro episódio da série com foco na casa Targaryen conseguiu nos ambientar nos Sete Reinos antes da disputa pelo Trono de Ferro em “Game of Thrones”, ao mesmo tempo em que apresentou os peões participantes desse novo joguete político.

Estamos no início do segundo século da dinastia valiriana. Curiosamente, o episódio já nos conecta à produção anterior ao mostrar o resultado do conselho liderado por Jaehaerys I (Michael Cárter), a fim de decidir quem seria seu sucessor. Esta primeira sequência já antecipa tudo aquilo que o piloto e a série tratarão: a participação do povo sendo figurativa – quem sabe uma produção sobre Duncan e Egg mudasse tal perspectiva -, um conselho que define os próximos passos da dinastia e uma mulher cerceada em prol do patriarcalismo. Os três pontos dizem muito sobre o que é “A House of the Dragon”, inclusive rememorando a existência de Daenerys Targaryen, considerada a última de sua casa.

 Fragilidade, teu nome é mulher

O papel da mulher na sociedade westerosi – e consequentemente na nossa – é um dos temas mais discutidos nesse capítulo. Desde o cheiro de Rhaenyra (Milly Alcock) ao silenciamento de Corlys Velaryon (Steve Toussaint) ao escárnio da figura de Rhaenys (Eve Best), passando pelas imposições sobre o corpo feminino até destinação das mulheres é algo muito incômodo, principalmente ao notarmos como algumas aceitam o destino que lhes é imposto, como Alicent (Emily Carey) que até o momento é apenas uma das armas de Otto Hightower (Rhys Ifans) na corte; enquanto outras tentam resistir a pressão patriarcal ainda que sejam subjugadas por ela.

Nesta construção, a cena mais chocante, e dificilmente esquecível, é a de maior violência contra mulher. Nem em “Game of Thrones”, famoso por sua misoginia, vimos algo tão humilhante e repugnante quanto o parto de Aemma (Sian Brooke). É difícil por em palavras o quão dolorosa é a sequência, principalmente pela cumplicidade de Viserys (Paddy Considine). Contudo, a cena nos leva a entender suas características e forma de reinar. E até o momento, tendo a concordar com a visão de Daemon (Matt Smith) sobre o rei: parece que esse é um mal dos Viserys.

Os dançarinos na casa do dragão

O Príncipe da Cidade é um dos personagens que chamam atenção nesse primeiro capítulo, não só por sua atuação frente à plebe, na única sequência em que o povão parece ter algum tipo de participação; mas também pela sua relação familiar. Importante escolha para adicionar camadas cinzentas ao comandante dos mantos dourados. A narrativa já começa a desenhar a proximidade de tio e sobrinha e é sagaz em destacar como eles ainda mantém costumes próprios como os diálogos em alto valiriano. Esse é um personagem para ficar atento.

O roteiro nos mostra os jogadores dessa fase: o rei, Rhaenyra, Daemon, Otto e Corlys. “House of the Dragon” não tem medo de já nos apontar quem são as principais peças desse tabuleiro e suas motivações, ainda que alguns não tenham se posicionado tanto assim, conseguimos vislumbrar as armas e artimanhas que estes desempenharão na guerra civil Targaryen. A fotografia de Fabian Wagner (“Game of Thrones”, “Liga da Justiça”) complementa essa ideia ao mostrar planos que ajudam a compreender suas características. De um plano espelhado em Viserys a um ângulo em contra plongée de Daemon, esses detalhes arrematam o tipo de pessoa que este novo ambiente entrega.

Para ambientar por completo no domínio do dragão, a cenografia e direção de arte nos levam a um período distante do vivido na adaptação das Crônicas. Estamos diante de uma Porto Real mais limpa e melhor iluminada, em nada lembrando a cidade vitimizada pelas decisões Lannisters. O auge da unificação dos Sete Reinos pode ser sentido pela suntuosidade, claridade e habitação dos ambientes. É como se fizéssemos um passeio por um local que conhecemos bem, mas com uma roupagem nova e muito melhor.

Entre músicas e segredos

Apesar desse clima de saudosismo e reencontro, algumas coisas destoaram nesse primeiro capítulo. A primeira delas é a ausência de uma abertura. Em um momento inicial, ouvimos a música de abertura de “Game of Thrones”, decisão que se repetiria com a trilha sonora desta série. Por mais que ouvir as canções deixe aquele gostinho de saudade, assim como o visual de Porto Real recebeu mudanças, a mesma coisa espera-se para a questão sonora. Afinal, já bem sabemos que nostalgia de mais cansa.

O mais absurdo, contudo, fica por conta do plot revelado no diálogo de Viserys (olha ele dando outra bola fora) e sua herdeira diante do crânio de Balerion. A cena em si tenta passar um clima confidencial e de solenidade que se perde entre os cortes e as palavras do rei, além do destaque dado a adaga de aço valiriano em sua bainha e que já é bem conhecida pelos fãs do universo.

Preciso citar o “Mundo de Gelo e Fogo” e relembrar que entre Jaehaerys I e Aegon, o Conquistador houve uma disputa de sucessão entre Maegor, o Cruel e o irmão mais velho de Jaehaerys, o que torna a passagem do sonho do Conquistador entre seus herdeiros diretos impossível. É inviável perpetua-lo até os dias de Rhaegar, dado a inconstância na linha de sucessão e os próprios eventos desencadeados durante a dança dos dragões.

Entre os questionamentos e aberturas que derivam do segredo estão: como isso se manteve oculto para os septões que narram a história dos Sete Reinos? Como foi passado dado a instabilidade mental dos monarcas Targaryen? Quem o escreveu para que Rhaegar pudesse ter acesso anos mais tarde? Seria isso que fez Brynden Rivers defender tanto a dinastia a qual era bastardo?

Se continuar questionando, encontrarei justificativas e novos furos que não cabem aqui. Contudo, soma-se ainda a negligência deliberante em relação ao Norte, esquecido por todos os soberanos – tal qual na vida real. A sensação que me passa é de uma forçação para conectar a dança dos dragões à canção de gelo e fogo, emplacando ainda a superioridade Targaryen frente a todos os eventos deste universo. Algo que alguns fãs tentam fazer a anos e que, sinceramente, é tão chato quanto a melhor parte da força ser exclusiva aos Skywalker.

“House of the Dragon” tem um começo promissor, apontando claramente os próximos passos da dança, seus envolvidos e as motivações por trás de cada ação. A série brilha muito mais quando não se preocupa em emular situações de sua predecessora. Se é preciso conhecer sua história, como Viserys afirma a Rhaenyra, melhor ainda é vivê-la sem se apegar ao futuro.