É sempre estimulante prestar atenção em trabalhos em que comediantes consagrados vão para o registro do drama (e vice-versa). Estes filmes, via de regra, surgem com frescor, pois o rosto conhecido por fazer rir está ali exposto para chegar em outro resultado, às vezes o oposto da leveza. Dependendo do quão raro é ver determinado intérprete em outro gênero, apenas em situações assim nos damos conta de que o comediante também é um ator, igualzinho aos outros, alguns melhores que os dramáticos. É claro que nem sempre funciona, mas essa mistura tende a gerar resultados provocativos.

Joias Brutas, dos irmãos Josh e Benny Safdie, é um bom exemplo desta regra, ao trazer a melhor performance de Adam Sandler em anos. Desde Embriagado de Amor sendo mais específico, filme que, coincidência ou não, também marcava a tentativa do ator de se experimentar fora das comédias mais fáceis. Daqui a pouco falo mais de Sandler, essa figura, digamos, surpreendente.

A dupla de diretores claramente jogou mais pesado neste filme do que no seu anterior, Bom Comportamento (na minha opinião, o melhor filme de 2017). As semelhanças ainda estão presentes como a trama frenética com ação do início ao fim, câmera nervosa, cores, protagonistas com distúrbio de caráter.

Só que em Bom Comportamente o personagem principal está o tempo inteiro se escondendo, tendo que ficar invisível como uma estratégia de sobrevivência, enquanto que em Joias Brutas a figura expansiva do joalheiro chama a atenção de todos para conseguir algum negócio a mais, e parece lidar bem com os afazeres cotidianos sob a mira de uma arma. Até têm personalidades parecidas, mas trabalham em registros diferentes. Em Joias Brutas, os cenários são maiores, a ação é mais ambiciosa, e há mais coisas em risco.

A trama acompanha o joalheiro Howard Ratner (Sandler), que é um trambiqueiro nato. Faz negócio com um e usa isso como garantia para outra transação, e com o lucro futuro faz apostas de dezenas de milhares de dólares, perde milhares, ganha outros, arrisca de novo, passa a perna em alguém, enquanto convive com as ameaças de pessoas que fizeram parte de negociações passadas e estão esperando seu dinheiro. No meio dessa confusão, Ratner tem acesso a uma pedra preciosa descoberta na Etiópia, que chama a atenção de Kevin Garnett (sim!), jogador de basquete, do Boston Celtics, que acredita que a joia é um amuleto que lhe ajudará na semifinal dos playoffs da NBA de 2012.

VIOLÊNCIA E CAPITALISMO AMERICANO: COMBINAÇÃO EXPLOSIVA

Dentre outras coisas, Joias Brutas é sobre o capitalismo. O capitalismo dos Estados Unidos. E por conta disso, creio eu, trata-se de um filme tão violento.

Começamos na Etiópia, a milhares de quilômetros de Nova York, e nos damos conta do quanto a influência do dinheiro determina métodos cruéis, em que qualquer individualidade razoável é suprimida pela busca pelo lucro. Só que quando chegamos na colorida América, esta crueldade é disfarçada por uma sofisticação veloz, fugidia, em que números são ditos a todo momento, porcentagens, investimento, sorte, blefe, com pessoas bem vestidas falando ao telefone.

Tudo é frenético, se perde ou ganha muito dinheiro em segundos. Negocia-se com membros da família, ou com pessoas comuns, rappers, atletas, gangsters, e somente o que importa é quanto eu serei capaz de lucrar em cima deste otário, e quanto mais adrenalina estiver envolvida nisso, ok. Uma crueldade disfarçada pela bela arquitetura da cidade, ou pela fineza das pessoas que ali moram, que esconde o mais puro individualismo, e indiferença pelo outro.

Os Safdie, com poucos filmes, já apresentam assinatura. Trata-se daqueles diretores que, ao ver 30 segundos do filme, sabemos quem dirigiu. Ainda são jovens, 35 e 33 anos, mas demonstram saber exatamente o que estão fazendo.

O estilo permanece afetado, com trilha praticamente onipresente (novamente Daniel Lopatin, com resultado extraordinário), cores marcantes através de luzes, câmera nervosa, às vezes na mão, enquadramentos fechados nos atores enquanto lidam com um problema, e percebem que outro já está batendo literalmente na porta. Às vezes soa excessivo ver três situações convergindo para o mesmo momento, com falatório dos atores, trilha de música eletrônica, câmera tremida, mas é notável o quanto os diretores conseguem estabelecer coesão para que funcione no todo. Sinal de maturidade, que sua obra precisa de atenção para ser compreendida, mesmo que a embalagem sugira apenas um filme ágil e divertido.

ADAM SANDLER BRILHANTE

Da mesma maneira que Bom Comportamento é um testemunho do talento de Robert Pattinson como intérprete, Joias Brutas é o mesmo para Adam Sandler. Aparecendo em filmes como este, Sandler demonstra que é sim um grande ator, mas que talvez prefira encaminhar sua carreira para um caminho mais confortável, ao fazer as comédias de sempre. Acho que preferiu ser milionário. Difícil criticar uma escolha como essa, talvez fizesse o mesmo. Mas não deixa de ser frustrante ver alguém com tanto talento escolhendo usar apenas uma parte de seus registros, e a que menos explora sua capacidade.

Sandler traz inconsequência ao papel, cria uma figura que aparentemente está sempre disposto a dobrar a aposta, não importa as circunstâncias. Mas é mais que isso. É alguém que. por trás dessa figura. carrega um olhar de preocupação, alguma angústia. Mas tudo isso por si mesmo, pois Ratner é um sociopata, que não se importa com ninguém. É interessante notar o olhar de Sandler para pessoas que ele precisa agradar, e as que ele precisa afastar. É transparente, mas está por trás de um véu sedutor de perfume barato, sorriso nervoso, lábia de vendedor. Trabalho espetacular, que acredito que não chegou longe em premiações por conta da crueza da violência do filme, e do seu desfecho chocante.

Dizer que é importante ficar de olho nos irmãos Safdie deixou de ser uma previsão. Eles já são reais. E me animo em ver que deram certo num projeto com mais dinheiro e ambição. Tomara que eles tenham feito um contrato de três filmes com o Sandler, porque assim eles “ajudariam” o coleguinha também.

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...