Salvo raríssimas exceções, cinebiografias tendem à exaltação e serem chapas brancas com os seus retratados – “Bohemian Rhapsody” é o caso mais recente disso. Porém, “Nada a Perder 2” extrapola essa característica ao adotar uma quase santificação do protagonista, o fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, o pastor Edir Macedo.
Se este fosse o maior problema, ok, seria um constrangimento até esperado. O pior, porém, é muito mais grave: a partir do conceito de que os evangélicos sempre foram perseguidos devido às suas crenças, “Nada a Perder 2” trata todos aqueles que pensam de forma oposta como intolerantes e dispostos à barbárie contra o povo liderado por Edir Macedo. Deturpando informações e relativizando outras, o filme provoca um desserviço ao alimentar rivalidades em um país tão dividido como o atual.
“Nada a Perder 2” se concentra em três episódios: as polêmicas judiciais envolvendo a igreja na década de 1990, incluindo, o chute desferido por um pastor em uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida durante programa na TV Record, a expansão da Universal do Reino de Deus e a construção do Templo de Salomão.
MOISÉS VERSÃO PASSIVA
Baseado na autobiografia homônima do pastor, o roteiro escrito por Emílio Boechat traça um ‘modesto’ paralelo de que Edir Macedo (Petrônio Gontijo) seria o mesmo para os evangélicos do que foi Moisés para o povo de Israel. Com isso, o pastor será testado ao limite pelas mais cruéis perseguições e não fará nada; será apenas resiliente. Quando tudo estiver sem caminho, a ida ao Monte Sinai o salvará e ao seu povo também. Se do ponto de vista religioso, a estratégia já soa exagerada em suas pretensões, como cinema revela-se um desastre.
Isso porque o Edir Macedo de “Nada a Perder 2” é irritantemente passivo, não age nem evolui na trama. A resiliência dele nem chega a ser comovente pelo simples fato de ficar apenas se lamentando pelos cantos, semelhante a uma mocinha das piores novelas das nove. Para efeito de comparação, Moisés, em todas as versões da história (inclusive, do folhetim da Record), apresentava sinais de transformação e era um protagonista ativo.
Tamanho o egocentrismo no protagonista que todo o resto fica esquecido. Há uma tentativa de se dar destaque para a esposa de Edir, Ester Bezerra (Day Mesquita), mas, a própria fala do protagonista de que ela diz mais calada do que falando e o irritante apelido de ‘amorzinho’ pronunciado o tempo todo destroem a personagem. Isso fica claro quando antes dos créditos finais surge a família real do pastor e pouco interessa o que falam, afinal, nenhum teve um desenvolvimento razoável anteriormente para merecer a atenção do público.
Apesar do orçamento estimado em R$ 16 milhões, “Nada a Perder 2” é de uma pobreza assustadora em termos técnicos. Nas cenas ambientadas no Brasil, os cenários repetem-se igual uma novela: vai do templo em constante contraluz para a casa de Macedo passando pelo ambiente escuro do local onde o padre vive até voltar para o templo e por vai. Já nas locações na África do Sul, Egito e Israel, percebe-se mais a vontade de mostrar os atores em planos abertos com tomadas aéreas do que em criar algo realmente relevante para a trama. Nem mesmo a sequência no Monte Sinai à noite se salva por ser tão malfeita que deixa a impressão de ter sido realizada em um estúdio.
OPORTUNIDADE PERDIDA
Refletindo o mundo atual em que mais vale narrativas próprias do que a realidade dos fatos e a incapacidade de lidar com o oposto, “Nada a Perder 2” alimenta esta jornada messiânica de Edir Macedo através de ataques a seus inimigos, a partir da crença de que evangélicos e seus valores sempre foram e são perseguidos. A sequência inicial já deixa esta linha de pensamento muito clara: uma jovem inocente caminha pela rua e começa a ser perseguida por um grupo de pessoas (maioria homens) até ficar encurralada em um beco. Trovões no céu e caos na terra: acuada, a garota nem consegue falar direito e já leva violentos socos e pontapés até cair desmaiada no chão.
Cerca de 20 minutos depois, entendemos a razão da violência: católicos raivosos com a suposta agressão sofrida por Nossa Senhora de Aparecida, feita por um pastor em um programa da Rede Record, partiram para cima do primeiro evangélico que viram. Não demora muito também para aparecerem manchetes de jornais dizendo que um católico agrediu um evangélico e o próprio Edir ser alvo da fúria com ofensas verbais. Como se ainda não bastasse, o padre vivido por Eduardo Galvão age como um dos vilões de “Nada a Perder 2” fazendo de tudo para derrubar a Universal com direito a uma risadinha fatal.
Por outro lado, a agressão feita à imagem da santa deixa de ser um chute para virar uma ‘pancadinha’ feita por uma pessoa, com alma de criança, que agiu sem pensar. Uma tentativa de minimizar o ocorrido vexatório e um desserviço de informação ao público.
Apesar do maniqueísmo ser figura essencial para a existência do imaginário religioso – céu e inferno, Deus e o Diabo, pecado e obediência -, a linha seguida por “Nada a Perder 2” preocupa pela irresponsabilidade de estimular divisões e não criar pontes entre opostos. Não nego que, em algum momento, tais perseguições possam ter ocorrido a evangélicos (muito longe, porém, das dimensões passadas na produção) e a Igreja Católica tenha visto na Universal uma real ameaça, mas, o filme não estimula um discurso de união.
Ao adotar a construção narrativa vilanesca para os católicos, a produção claramente busca fidelizar os seus fiéis e angariar novos com um discurso de amor. Com isso, “Nada a Perder 2” perde uma oportunidade rara para discursar sobre a necessidade de combater à intolerância religiosa, algo que poderia servir, inclusive, até mesmo na relação entre os evangélicos e as culturas afros, por exemplo.
A cinebiografia de Edir Macedo, porém, está tão concentrada em atacar seus rivais – além da Igreja Católica, a Rede Globo, Folha de São Paulo e integrantes do Judiciário e Legislativo são alvos também – que praticamente esquece o importante papel da Universal dentro de presídios Brasil afora na reinserção de pessoas que o Estado abandonou. Nem mesmo os fiéis ganham tanta importância assim com algum personagem de destaque: todos viram um grande amontoado de gente em imagens aéreas para dar a dimensão do tamanho da igreja.
Esta retórica divisiva de “Nada a Perder 2”, entretanto, não surpreende. Tornou-se o padrão a ser seguido neste Brasil de 2019.