Logo nas primeiras cenas de “Dor e Glória”, Salvador Mallo (Antonio Banderas) está mergulhado no fundo de uma piscina de olhos fechados. Em seguida, a câmera dá um close e mostra a cicatriz por todo o tórax, fruto de um procedimento cirúrgico. Ali, Pedro Almodóvar dá a chave ao espectador de que será convidado para entrar no íntimo de um personagem fragilizado tanto pelo corpo quanto, principalmente, pela própria mente.
“Dor e Glória”, sem dúvida, é o filme mais pessoal de Almodóvar desde “Má Educação” (2004). Longe do histrionismo cômico de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988) ou da tragédia pura de “Julieta” (2016), o diretor utiliza uma narrativa melancólica para refletir sobre os caminhos da própria vida em uma quase autobiografia. Aparecendo com certa constância ao longo de “Dor e Glória”, os cartazes de “Hamlet”, de William Shakespeare, e de “Gato em Teto de Zinco Quente”, de Tennessee Williams, simbolizam o estado de espírito do protagonista.
A história acompanha o cineasta Salvador Mallo lidando com problemas de saúde à beira dos 60 anos. Sem condições físicas e emocionais para voltar a dirigir, ele passa a recordar a relação com a mãe (Penélope Cruz na fase infantil, Julieta Serrano na fase adulta), o grande amor da vida (Leonardo Sbaraglia), as desavenças com um antigo parceiro de trabalho (Asier Etxeandia).
NOSTALGIA E URINA: OS CHOQUES DE SER ALMODÓVAR
Os elementos clássicos da filmografia do espanhol estão lá: a pureza infantil em contraste com os primeiros desejos ‘proibidos’, a presença feminina quase santificada seja na presença da mãe ou de várias mulheres cantando no início do filme, a igreja como uma sombra repressora e o ateísmo sendo o enfrentamento disso, os amores difíceis, a pitada de melodrama, a trilha sonora de cantos vibrantes e dramáticos, as ‘cores de Almodóvar’. Poderia ser ‘mais uma obra’ ora muito boa (“A Pele Que Habito”) ora fraca (“Amantes Passageiros”) como o diretor vem proporcionando nos últimos anos.
Mas, a exposição pessoal, quase uma terapia em público, transforma “Dor e Glória” em um filme relevante e tão importante sobre os fantasmas da mente de uma das figuras mais instigantes ainda hoje do cinema mundial. Se pequenos detalhes – o endereço de Mallo ser o mesmo de Almodóvar e o zumbido do personagem também ser vivido pelo diretor – soam como pequenas curiosidades, outros como a busca de Mallo em se conciliar com Alberto (Exteandia) e a conversa com a mãe, já no final da vida pedindo que não usasse suas histórias nos filmes, servem como um reencontro consigo próprio.
Esta janela aberta em que transborda medo, insegurança, nostalgia e dores inevitavelmente acaba por refletir em uma metalinguagem, pois, Almodóvar durante toda sua obra utilizou estes sentimentos como matéria-prima de suas produções. Por isso, quando Alberto declama o texto escrito por Mallo sobre o cinema ser, ao mesmo tempo, uma sensação bonita ligada à infância, mas, com cheiro de urina, há uma ligação precisa com a obra do diretor: quantas vezes Almodóvar não nos surpreendeu aos nos arrancar uma risada no meio de um drama? Ou nos fazer chorar na mais hilariante comédia? Ou nos fazer suspirar de paixão perante uma história dura?
Nesta dicotomia fascinante, “Dor e Glória” torna-se uma obra essencial da carreira de Pedro Almodóvar não apenas por ser um grande filme; abre portas para entendermos com mais riqueza as construções feitas por este gigantes em outras produções.