O primeiro plano que vemos de Perdidos na Noite é de uma tela de cinema drive-in e ouvimos cavalos e efeitos sonoros dos inúmeros faroestes que devem ter passado nela. Isso não é por acaso: Joe Buck, o protagonista da história, pensa que é um caubói. Também acredita ser um garanhão. Autopercepção e questões de identidade são primordiais no longa e não deixa de ser curioso o fato do quanto das nossas identidades são moldadas pelos filmes que assistimos. Joe, com certeza, assistiu a muitos faroestes ali.

Movido por nada além das suas duas convicções, ele larga o empreguinho de lavador de pratos no Texas e se muda para Nova York, totalmente paramentado com chapéu, botas e jaqueta. Seu objetivo é virar garoto de programa na Big Apple.

AMIZADE E AMOR EM MEIO À CIDADE HOSTIL

É preciso viajar um pouco no tempo para se ter noção do impacto de Perdidos na Noite para o cinema. A viagem de ônibus de Joe Buck ao som da hoje clássica canção “Everybody’s Talkin’” de Harry Nilsson está acompanhada de uma montagem dinâmica com a realidade e os sonhos do personagem; imagens coloridas e preto-e-branco se alternam. O efeito é hipnótico: em poucos minutos, o protagonista nos conquista e sua viagem se torna empolgante. Foi mais um exemplo da inovação da Nova Hollywood, contemporâneo dos experimentalismos de “Easy Rider: Sem Destino (1969).

O diretor britânico John Schlesinger já tinha feito alguns filmes notáveis na Inglaterra como O Mundo Fabuloso de Billy Liar (1963), Darling: A Que Amou Demais (1965) e Longe Deste Insensato Mundo (1967). Na ida para Hollywood, Schlesinger levou o espírito europeu de cinema. Em Darling, ele documentou a “swinging London” da época; em Billy Liar, mergulhou na imaginação e na vida interior do protagonista. Em Perdidos na Noite, ele combina as duas coisas. De certa forma, o filme praticamente representa a transição entre a experimentação dos anos 1960 para a crueza dos 1970.

Chegando em Nova York, Joe Buck só se dá mal. Visto como mais um esquisitão, ao invés de um sedutor, ele logo perde o pouco dinheiro que tem e a esperança do início se transforma em solidão. Joe então conhece o trambiqueiro Ratso Rizzo e a relação antagônica entre os dois aos poucos se torna amizade e amor em meio à cidade hostil e selvagem.

Joe é interpretado por Jon Voight e Ratso, por Dustin Hoffman, e as duas atuações entraram para a história. Voight é absolutamente cativante em sua inocência e nem parece estar atuando – o personagem que se vê na tela poderia ser uma caricatura, mas o ator o torna uma figura quase real. Já Hoffman parece um rato mesmo: sempre um ator exibido, ele se aproveita de um verdadeiro arsenal de maneirismos para compor Ratso. Da voz anasalada e corpo encurvado ao já clássico improviso “Tô atravessando aqui!” para um taxista que acidentalmente invadiu a filmagem, o personagem é um desastre em forma humana e Hoffman ressalta o quanto ele é patético, ao mesmo tempo mantendo-o carismático e divertido.

ENTRE A FARSA E A EMOÇÃO GENUÍNA

E a relação dos dois é a essência de Perdidos na Noite: décadas antes de O Segredo de Brokeback Mountain (2005) ou mesmo de Ataque dos Cães (2021), Schlesinger – que era homossexual – já apontava algo oculto no centro do mito do caubói e do herói americano. O filme mantém isso nas entrelinhas, mas fica claro o aspecto homoafetivo da relação entre Joe e Ratso. Aliás, a sexualidade de Joe é abordada por meio de sonhos e flashbacks, quando vemos a relação com a avó e com a “Annie maluca”.

Por causa desse olhar honesto sobre sexualidade e a prostituição masculina, o filme recebeu a classificação etária “X” nos Estados Unidos em 1969, reservada para longas eróticos, mesmo que Perdidos na Noite não tenha nenhuma cena explícita de fato. Depois a classificação foi revista e rebaixada para a mais razoável de 17 anos, mas, por causa disso, ele até hoje tem a distinção de ser o único longa “X” a vencer o Oscar de Melhor Filme.

O Oscar e as polêmicas, porém, parecem meros detalhes para uma obra que ainda hoje impressiona e cativa. O filme consegue, por boa parte de sua duração, intercalar a tristeza daquelas vidas com alguns momentos de humor – o sonho de Ratso na Flórida é tão patético quanto hilário. Poucos filmes conseguem combinar farsa com emoção genuína de modo tão efetivo. Perdidos na Noite só diminui um pouco ao se alongar na sequência da festa psicodélica no seu terço final: é o único trecho dele que deixa claro que se trata de um filme dos anos 1960.

Porém, logo depois dessa festa o filme engata outra marcha que nos leva a uma das conclusões mais dilacerantes da história do cinema. É quando a questão da identidade de Joe Buck parece ser definitivamente resolvida: de uma caricatura moldada pelo próprio cinema, ele aparentemente muda para um ser humano autêntico. Ao longo do filme, Joe tem no seu quarto um pôster de Paul Newman e menciona John Wayne – por coincidência, Wayne levou o Oscar de Melhor Ator naquele ano batendo Voight e Hoffman, em mais um daqueles irritantes “prêmios pela carreira” que a Academia frequentemente cede a seus astros. Enfim, estes são seus ideais de masculinidade. Mas a masculinidade, como a própria trajetória de Joe mostra, é complexa.

Visto hoje, Perdidos na Noite é muitas coisas em um filme só: o retrato de uma Nova York que não existe mais; uma história sobre alienação, identidade e encontrar amor e amizade no lugar mais improvável; uma obra que é, ao mesmo tempo, um documentário de sua época e o retrato atemporal de sentimentos humanos que nunca deixarão de ter força. E quando toca aquela trilha melancólica – e também clássica – de John Barry, é impossível não se emocionar. Hoje, Perdidos na Noite continua um dos mais tristes – embora seja bem engraçado em vários momentos – e belos filmes da história do cinema, e seu prêmio de Melhor Filme representa uma das vezes em que a Academia realmente acertou.