Há um fato incontestável impresso na sociedade: a reparação histórica para com os negros nunca de fato existiu. Houve uma grande resistência em aceitá-los como cidadãos, sujeitos sociais com direitos e deveres assim como outros sujeitos não negros. Corpos negros foram invisibilizados, negligenciados. Toda a violência que sofreram e ainda sofrem por conta da herança colonizadora ainda são muito fortes. Negros têm que provar dez vezes mais a sua potência para ter uma pequena oportunidade frente a um branco medíocre, por exemplo. A abolição não libertou os escravizados e seus descendentes de um histórico de dor, luta, violência e extermínio e, hoje, em pleno Século XXI são problemáticas fundamentais de cunho social e político na ruptura com essa ideia de falsa democracia racial (como aqui no Brasil impera) e oportunidades para todos. Todos quem?

Agora imagine um jovem afro-americano, caribenho cheio de sotaque, retinto, pobre e de pouco estudo, tentar a vida como ator em Hollywood em sua era de ouro? Coisa inimaginável na época, pois apenas os caucasianos eram estrelas ilustres e que davam ao nome a, então, maior indústria cinematográfica. Eis que surge, esse negro esbelto, viril, de um sorriso encantador chamado Sidney Poitier.

Não foi fácil sua carreira, como dito em “O Legado de Sidney Poitier”, documentário com produção de Oprah Winfrey. Naquela época, anos 1940, atores negros serviam apenas como alívio cômico ou serviçal – isso sem falar quando não usavam o blackface, que não é citado na obra, mas Sir. Poitier foi além. Consciente do seu corpo, da sua negritude, da importância de sua voz, buscou por papéis sérios, que humanizassem a figura do negro e quebrar os paradigmas impostos socialmente dessa figura como subjugada por sua condição social, racial e política.

DOCUMENTO HISTÓRICO

Sir. Poitier foi além ao ser um dos grandes nomes de Hollywood na chamada era de ouro. Foi o primeiro ator negro a vencer o Oscar de melhor ator por “Uma Voz nas Sombras” em 1964 (antes disso, apenas Hattie McDaniel havia vencido como atriz coadjuvante por “…E O Vento Levou”, em 1939. Depois dessa vitória histórica de Sidney, outro negro só veio vencer na categoria principal em 2002 com Denzel Washington por “O Dia de Treinamento” na mesma ocasião Halle Barry foi a primeira e única até agora a vencer como atriz por “A Última Ceia”), como Oprah ressalta, antes dos Direitos Civis entrarem em vigor.

Foi além por usar de sua popularidade para apontar a agudez de uma ferida que nunca cicatriza do que é ser negro em uma sociedade orgulhosamente racista como os EUA (coisa que quem é negro no Brasil sabe). Afinal, um artista de sua magnitude e importância poderia, deveria e tinha que se posicionar, especialmente quando a barbárie estava instaurada e nomes como Malcolm X e Dr. Martin Luther King foram assassinados pela convicção política e militância acerca do negro e direito civil.

O documentário assinado por Reginald Hudlin é um documento histórico. Não apenas exaltando a sua brilhante carreira, mas a construção enquanto cidadão e homem, pai de família, fadado a erros e acertos e sempre orgulhosamente íntegro. A dignidade usurpada de muitos negros para ele era algo importante, nunca abaixou a cabeça. Mesmo quando acusado de comunismo ou até mesmo quando fora acusado pela comunidade negra americana de ser um negro exemplar para entreter os brancos (e essa é uma questão tão delicada que fica para outra conversa, mas, como diz o ditado, boletos têm de ser pagos!).

ressignificação da humanidade do negro

A sua amizade com outro astro, Harry Belafonte, é um capítulo à parte e mereceria outro documentário dessas duas potências negras, de grande nome e significância; dois bicudos que tinham opiniões fortes e sabiam da importância que estavam galgando para o presente e as futuras gerações, haja vista que, entre os diversos entrevistados no documentário como Halle e Denzel, dois dos maiores expoentes da negritude de Hollywood. Além de Spike Lee, outro gênio e amigos de longa data como Barbra Streisand, Morgan Freeman, entre outros, e suas filhas e ex-esposas.

“O Legado de Sidney Poitier” tem uma importância histórica na construção de uma grande estrela que ousou ultrapassar a linha. Ousou em ser ousado e construir uma carreira impecável, algo inimaginável para um negro vindo de uma família pobre e de pouco estudo. Uma lenda do cinema, sua importância vai para além das telas, seu ativismo, sua fala mansa, seu corpo enquanto instrumento e sua bondade na ressignificação da humanidade do negro e que, sim, somos capazes. Viva Sir. Sidney Poitier.

Sir. Sidney Poitier faleceu em 6 de janeiro de 2022, aos 94 anos muito bem vividos e celebrados. Um nome que não pode ser esquecido.