Conheci o cinema do diretor amazonense Aldemar Matias por meio de uma amiga que dizia que ainda o veríamos assinando um original nos grandes serviços de streaming. Alguns anos se passaram e pude contemplar o trabalho do diretor ao lado de Larissa Ribeiro na tela da maior emissora do país. O que a dupla, também responsável pelo roteiro, nos apresenta é uma história conhecida, mas que ganha novos contornos ao entregar, de forma singela, particularidades que você só encontra na Amazônia. E é justamente isso a maior qualidade de “Pés de Peixe”: mostrar nossa cultura para um país que a marginaliza e a estereotipa. 

A narrativa parte da dificuldade enfrentada pelas famílias ribeirinhas da comunidade flutuante do Catalão, que precisam adquirir um novo gerador após o que abastece a energia da localidade queimar, para contar uma história conhecida que se apoia tanto na jornada do herói quanto em tropos de superação. A escolha não deixa de ser curiosa e, de certa forma compreensível, uma vez que utiliza um cenário específico da região, mas que se alarga conforme universaliza a trama; assim consegue criar um diálogo com o público amazônico, o qual tem a oportunidade de se enxergar em tela e com o restante do país, os quais podem contemplar não só as belezas do território, como também um dos desafios de quem vive nas paragens locais.

A Amazônia para o mundo

Um dos pontos fortes de “Pés de Peixe” é a contemplação amazônica que permeia toda a obra. Estamos diante do sotaque e das gírias amazonenses colocados dentro de um ritmo e condução preocupados em evidenciar o cotidiano da comunidade e os pormenores deste como, por exemplo, a maneira com a qual se comunicam, a ligação familiar existente entre os membros desta sociedade e os ofícios que costumam desempenhar. É interessante acompanhar como tudo é construído de forma orgânica e imagética a ambientação amazônica. Desde a primeira cena, é notável a diferenciação na rotina dessas comunidades da zona rural em relação até mesmo à urbanidade manauara, sem precisar se ater a referências batidas ou óbvias. 

Nesse aspecto, “Pés de Peixe” me fez pensar nas palavras do poeta paraense Paes Loureiro ao relatar como o tempo na Amazônia segue o mesmo ritmo das águas dos rios e dos ventos nas árvores, articulando uma vivência em simbiose entre a natureza e os habitantes do território. O poeta aborda o quanto essa ligação carrega traços poéticos e é justamente o que acompanhamos diante da conexão de Guilherme (Diego Léo) com as águas e com o Catalão, que torna a sua curta trajetória como atleta um conto de esperança. 

As imagens captadas pela câmera da excelente diretora de fotografia Valentina Ricardo mostram ainda questões para além do imaginário popular: de uma Amazônia rica em sua própria cultura e leitura de suas particularidades. Vale citar, por exemplo, a luz azul que permeia o barco que conduz Guilherme e suas acompanhantes após a corrida: ao mesmo tempo em que é óbvia em expor o sentimento que reveste o personagem naquele momento, faz uma referência clara ao fotógrafo paraense Luiz Braga que popularizou o uso de certas cores e iluminação para evidenciar a cultura amazônica e tem servido de base para muitas obras captadas na região. 

Uma história conhecida

Apesar de beber da cultura regional, “Pés de Peixe” emula de forma breve a jornada do herói. Guilherme é um rapaz prestativo que recebe o chamado para salvar sua comunidade. Ele reluta, mas aceita o desafio e, quando falha, encontra um mentor que o oriente a conquistar o que precisa. Todos esses momentos descritos de sua trajetória batem com a estrutura mítica traçada por Joseph Campbell e se mistura a ideia de um herói despido do egocentrismo e disposto a se provar pelo coletivo. 

Diego Léo nos entrega um personagem dócil e afável e, talvez, por esse motivo Rhuann Gabriel, que interpreta alguém bem mais expansivo e expressivo, seja o rosto que rouba a cena em “Pés de Peixe” ao lado do atleta Sandro Viana, intérprete do mentor de Guilherme. A realidade é que, embora o projeto pareça se organizar a partir das ações do nadador-corredor, são os membros da comunidade que realmente guiam os acontecimentos da trama. Neste sentido, é divertido que a resolução do problema que movimenta todo o exposto em tela parta de um aliado do herói e subverta, de certa forma, as expectativas sobre os pés de Guilherme. 

Aldemar Matias e Larissa Ribeiro mostram o potencial cinematográfico que a Amazônia tem a oferecer, pautando como as questões internas estão ligadas a fenômenos universais. O resultado é um filme simpático que engrandece e emociona por poder vermos dentro da tela e nos bastidores rostos que representam a região, os quais, em certa medida, são os nossos próprios corpos e reflexos. Mal vejo a hora de assistir o próximo telefilme amazonense.