Vez por outra, o cinema – ou agora, o streaming – retoma um fascínio pela maior criação da escritora norte-americana Patricia Highsmith (1921-1995), o psicopata sedutor Tom Ripley. A “Riplíada”, a série de cinco livros que a autora escreveu com o personagem, já rendeu, pelo menos, cinco adaptações para o cinema, produzidas por diferentes países e cineastas. As versões mais conhecidas são O Sol por Testemunha (1959), produção francesa estrelada por Alain Delon, e O Talentoso Ripley (1999), versão americana protagonizada por Matt Damon.

Bem, caro leitor, sou um grande fã de Highsmith e da Riplíada. Mas é preciso dizer que o cinema, com raras exceções, não “captou” a autora na maioria das adaptações. Highsmith é sombria demais e Ripley em especial sofreu com isso. Todas as versões do personagem para o cinema têm méritos, mas não aguentaram ir até o fim com a visão da autora: no longa francês, Delon é o Ripley perfeito, mas o desfecho é moralista e até mesmo absurdo; já no filme com Damon, o roteiro comete o pecado de fazer o anti-herói ser atormentado por uma consciência, o que mina o resultado final – não há nada mais anti-Ripley do que isso.

Enfim, cineastas às vezes ficaram cheios de dedos ao adaptar livros da autora – nem Alfred Hitchcock escapou, quando fez Pacto Sinistro (1951) e colocou lá um final espetaculoso e hollywoodiano. Ripley, no fim das contas, é um vilão pelo qual amamos torcer: esquisito, mas muito inteligente; dissimulado, mas criativo; ambicioso de um jeito que queremos ser; e que mata com selvageria, mas só quando a circunstância exige. E ele sempre escapa porque é a figura mais esperta das histórias.

DUPLA ZAILLIAN/SCOTT

É por isso que Ripley, a minissérie da Showtime em associação com a Netflix, é um prato cheio: até que enfim, alguém fez uma adaptação do personagem caprichando no lado noir da história – é até filmada em um deslumbrante preto-e-branco – e com um protagonista sem freios, que vive la dolce vita na maior parte do tempo, e nos mantêm entretidos com a rede de mentiras que cria. Mérito de Steven Zaillian, o roteirista/diretor, e do ator em estado de graça Andrew Scott, que faz o melhor Ripley de todos.

Zaillian, roteirista vencedor do Oscar por A Lista de Schindler e que já tinha dirigido a ótima minissérie The Night Of da HBO, adapta de forma fiel o primeiro livro da série, O Talentoso Ripley: estamos em 1961 e Tom Ripley (Scott) vive em Nova York dando pequenos golpes e fraudes. Um belo dia, é convocado por um milionário com a missão de viajar até a Itália para trazer de volta o filho dele: Dickie Greenleaf (Johnny Flynn), um herdeiro rebelde que foi para a Europa com a namorada Marge (Dakota Fanning). O pai ricaço pensa que Ripley é um velho amigo que pode convencê-lo a voltar. Chegando à Itália, o protagonista se encanta com a boa vida – e também um pouco com Dickie – e para tomar o que ele tem, se envolve em uma rede de fraudes e assassinatos.

MELHOR DO NOIR

Ao longo dos oito episódios, Zaillian e o diretor de fotografia Robert Elswit criam uma atmosfera de frieza e de ligeira irrealidade desde o início: este é um mundo noir, cheio de sombras – mas há um momento bem divertido com a cor vermelha – e no qual, às vezes, há longos trechos sem diálogos, onde só acompanhamos o protagonista resolvendo algum problema ou escondendo evidências – leia-se corpos. Às vezes, a fotografia adquire um caráter quase expressionista – um carro numa estrada à noite sendo emoldurado por árvores – ou contribui para trama, como no momento em que Ripley usa o pintor Caravaggio como inspiração para sair de uma encrenca.

Essa atmosfera fria talvez afaste alguns espectadores, mas particularmente acho que é uma forma bem efetiva da adaptar Highsmith e O Talentoso Ripley. E é claro, tudo dá liga por causa de Scott, ator que embora hoje seja mais lembrado como o padre galã da fantástica série Fleabag, já fez “laboratório” como psicopata e vilão na série Sherlock, que o revelou, e em 007 Contra Spectre (2015).

Scott interpreta Ripley quase como um alienígena, alguém que não compreende o mundo e parece a poucos minutos de perder sua fachada de ser humano. Há vários momentos inspirados do ator: o jeito como ele diz “I like girls” (Eu gosto de garotas) para Dickie, o comentário dele sobre a geladeira que o casal compra, cenas em que vemos o personagem pensando rápido… Tecnicamente, Scott é um pouco velho para o papel – o personagem no livro pede por um ator mais jovem. Mas ele facilmente contorna isso com seu trabalho: É de fato uma grande atuação, e que carrega também a responsabilidade de manter nosso interesse, sozinho em cena, por vários trechos dos episódios.

RIPLEY MAIS VIVO DO QUE NUNCA

A série é tão focada no Ripley que os demais personagens até não ganham muito desenvolvimento. Isso não chega a ser um problema em si, mas faz com que os coadjuvantes não tenham muito espaço para brilhar ou criar figuras marcantes, exceto por Maurizio Lombardi como inspetor Ravini – o ator italiano, com sua frieza e composição estudada, se mostra um adversário à altura para o anti-herói. E no último episódio, há uma participação inspirada de outro ator que já viveu um Tom Ripley, e até se saiu bem – não estragarei a surpresa.

Sobre o desfecho, há alguns desenvolvimentos que parecem indicar que a atração pode continuar: Embora a cena final da minissérie seja um momento clichê, eu particularmente gostaria de ver essa mesma equipe criativa adaptando os livros seguintes do personagem.

Mas quer continue ou não, Ripley já merece destaque como uma obra cheia de estilo, com momentos fortes, que segue sua própria visão e não tenta suavizar a história ou seu personagem. Tom Ripley, com seu comportamento amoral e cínico, não deixa de ser um anti-herói perfeito para os nossos tempos, o que ajuda a explicar porque, mesmo depois de tanto tempo, a obra de Patricia Highsmith continua servindo de inspiração para cineastas. E agora, com Andrew Scott, o personagem parece mais vivo do que nunca antes, na tela.