Em 1983, a teórica feminista Laura Mulvey publicou um artigo sobre como o prazer visual e narrativo estavam relacionados à perspectiva masculina. Talvez, nenhum filme tenha conseguido explanar isso até “Pleasure”, de Ninja Thyberg. Isso se deve à escolha da diretora de explorar uma das indústrias mais misóginas e patriarcais que existe: a pornográfica.

O roteiro segue uma premissa popular em Hollywood: a protagonista que sai de um lugar distante para um grande centro urbano em busca do sonho americano. O que diferencia a narrativa de Thyberg é o anseio de sua personagem principal em ser a maior estrela do cinema pornô. A sueca Bella Cherry (Sofia Kappel) não é uma garota inocente, como a Ester de “Nasce uma Estrela” (1937) ou uma vítima das circunstâncias em busca de abrigo, como em “Nada Ortodoxa” (2020).

Ela adentra nesse novo universo porque quer alcançar um status. Sabe onde deseja chegar, contudo, desconhece realmente como funciona a indústria pornográfica, descortinando-o no processo da sua escalada, oferecendo uma percepção das muitas violências que as mulheres passam dento do segmento.

A complexidade de Cherry

Bela se torna uma figura complexa. As decisões que toma em sua trajetória e as reações advindas destas deixam o espectador confuso em muitos momentos. Parte disso se deve às informações que temos sobre a vida anterior da protagonista: simplesmente nenhuma. Não conhecemos muito sobre ela, a não ser o que é visto em tela e da sua ambição.

Sofia Kappel é excelente em demonstrar isso por meio de seus grandes olhos azuis, constantemente inexpressivos dando o ar de inocência que a personagem tenta exalar. No entanto, dois dados são o suficiente para que a aura de mistério em torno dela a deixe cada vez mais emblemática: o desejo de chegar ao topo e o motivo que a levou a escolher a profissão.

Nesse percurso, a forma como o olhar é projetado adquire contornos palpáveis. A narrativa é construída em cima das várias câmeras em cena. Temos então a câmera neutra da diretora, a subjetiva de Bela e a pornográfica sobre seu corpo. Essa tríplice perspectiva torna “Pleasure” um exemplar da teoria de Mulvey, a qual relata que o prazer visual é alicerçado no olhar do diretor, do protagonista masculino e do espectador – tido como o homem. De certa forma, Thyberg procura subverter a colocação da teórica feminista, contudo deixando claro o quanto a presença masculina ainda é predominante.

O olhar feminino

Enquanto diretora, seu olhar não é contaminado pelo male gaze, prova disso é a ausência de cenas pornográficas na produção. A fotografia de Sophie Winqvist mostra nudez, mas não cenas explícitas de sexo. Há um cuidado imagético que contribui para a caracterização documental da trama, é como se acompanhássemos os bastidores de um filme pornô. E, neste aspecto, “Pleasure” é forte, pesado, carregado de violência e micro opressões.

Thyberg busca exprimir uma visão feminista sobre a indústria pornô. Sua protagonista, por mais que tenha o controle sobre seu próprio corpo, é absorvida pelo sistema, engolida na sua busca pelo estrelato. O roteiro expõe isso por meio de tropos problemáticos como a rivalidade feminina e a perca da sororidade à medida que conquista sua ascensão profissional. A câmera subjetiva auxilia a compreender a impregnação de Bela a indústria, primeiramente durante uma coerção e, por fim, no último degrau para o sucesso. Evidenciando, também, o quanto o olhar masculino está incutido na sociedade, mesmo quando uma mulher toma as rédeas da situação.

“Pleasure” não é um filme fácil de se acompanhar. Carregado de camadas e buscando apresentar o lado verossímil de um dos segmentos que mais cresceu durante a pandemia, é um relato insubmisso, feminista, agressivo e com muitos gatilhos. Difícil de assistir, porém necessário trazer a discussão.

MAIS CRÍTICAS NO CINE SET: