“Crimes do Futuro” é um filme que dispara tantas ideias diferentes ao longo da sua metragem que é impossível não ficar um pouco zureta. Esqueça toda a papagaiada sobre gente passando mal durante suas sessões em Cannes; esta é uma obra interessada, antes de mais nada, em longas discussões sobre o papel do artista em uma sociedade tecnocrática, a relação entre corpo e arte, corpo e tecnologia etc.

Mesmo já sendo um chavão, não deixa também de ser verdade: a impressão que se tem é a de que “Crimes do Futuro” é um sumário completo dos temas e imagens da obra de David Cronenberg. Estão ali, por exemplo, a ideia de órgãos gerados por uma “vontade subconsciente” de “Os Filhos do Medo” (1979); o masoquismo de “Crash – Estranhos Prazeres” (1996); as aberturas abdominais em forma de vagina de “Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (1983); e, pensando bem, até “Senhores do Crime” (2007) faz uma visita.

Mesmo com ares de palavra final, “Crimes do Futuro” parece longe de se esgotar. Ele não tenta solucionar nada, mas aponta caminhos possíveis para o futuro.

Futuro indolor

E, afinal de contas, que futuro é esse de “Crimes do Futuro”? Aqui, temos um mundo onde a dor foi abolida dos corpos humanos – que, tendo superado sua própria fisiologia, parecem imersos numa certa esterilidade sensível constante. Justamente por isso, aqui não se trata de um futuro asséptico à la “Possessor” (2020), longa do filho de Cronenberg, Brandon. Antes, a humanidade parece estar desesperadamente à procura de texturas, ruídos, interferências, algo que rompa a lisura de seus corpos. Daí a utilização de tecnologias analógicas pelos personagens desse mundo, bem como o trânsito por espaços mofados, saletas de paredes descascadas e calabouços habitados por performance artists.

Em um mundo sem dores, são precisamente os artistas que perpetuam a experiência do doer-se, resgatando sua própria humanidade no processo. Assim, assistimos à performance de uma artista que recebe diversas incisões no rosto, semelhantes às guelras de um peixe; outro, costura a própria boca e pálpebras e, com o corpo coberto por orelhas – imagem já icônica desde que pipocou nos trailers – executa uma dança.

E é a partir de um artista que “Crimes do Futuro” se desenrola. Saul Tenser (Viggo Mortensen) também é um performance artist, mas seu número é um pouco diferente. O corpo de Tenser tem a capacidade de gerar novos órgãos, com funções também novas e desconhecidas que o colocam no limiar do que conhecemos como humano. As performances dele consistem, justamente, na remoção desses órgãos por sua parceira, Caprice (Léa Seydoux) – uma forma de se rebelar contra a anarquia tumorosa do corpo, a dupla nos diz.

Todo esse entra-e-sai de órgãos chama a atenção de uma novíssima instituição, espécie de cartório de neo-órgãos atrelada à uma força policial responsável pelos tais “crimes do futuro”: na prática, tudo que fuja daquilo já mapeado (e, portanto, regulado) no que diz respeito ao corpo humano.

Artistas em cena

Mas este não é tanto um filme de plot; aqui, interessa mais a constante e meditativa expansão de seu mundo. Acompanhamos longas cenas de diálogos diante de fundos decadentes, envoltos nas sombras da textura digital da câmera de Cronenberg. Como estou sempre interessado em discussões sobre o propósito da arte (existe alguém que não esteja?) e como a imaginação de Cronenberg nunca deixa de surpreender (mesmo quando trabalhando em terrenos já explorados anteriormente), eu não poderia pedir mais.

Também ajuda que “Crimes do Futuro” seja ancorado por um trio central tão sedutor, tão interessante. Viggo Mortensen nunca pareceu tão cansado, encarnando um homem que parece prestes a sucumbir ao peso do próprio corpo a qualquer momento; Léa Seydoux, se não é demandada tanto quanto seu parceiro de cena, ao menos não faz feio quando precisa transparecer compaixão genuína; e, por fim, se Kristen Stewart não é a atriz mais interessante de sua idade que temos hoje, então não faço ideia de quem seja. Aqui, ela leva seu estado de ansiedade permanente a novos patamares: sua Timlin, burocrata do tal registro de órgãos, parece falar através de soluços involuntários e se mover como um camundongo. É impossível tirar os olhos dela.

Num mundo sintético e decadente, o ser humano ainda assim se adapta, reconfigura seu corpo, afirmando-se uma vez mais enquanto humano, contra todos os indícios. Que o corpo floresça nas condições mais áridas é algo que Cronenberg parece achar lindo e fascinante. Não espere por um gore fácil ou pela repulsa como instrumento de choque. Com a desenvoltura de um mestre, Cronenberg nos entrega aqui um filme estranhamente esperançoso.

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