AVISO: O texto a seguir contém um SPOILER da série Família Soprano.

Quando se assiste a Família Soprano, a obra-prima televisiva da HBO que se tornou marco da atual era de ouro dos seriados norte-americanos, algumas vezes os personagens mafiosos do programa se referiam ao passado como algo muito bom, os “good old days”, os velhos tempos da Máfia de Nova Jersey. Eles tinham até uma espécie de herói, o lendário Dickie Moltisanti, pai do personagem Chris Moltisanti e interpretado por Michael Imperioli.

Pois bem, no filme prequel da série, The Many Saints of Newark, produzido pela HBO e a Warner Bros., vemos esses bons tempos e o herói mafioso Dickie. E bem ao modo da série, percebemos que esse período idealizado não era tão bom quanto eles faziam parecer. E pena que o filme também é apenas mediano, não tão bom quanto poderia ser.

Ambientado entre 1967 e 1972, The Many Saints of Newark acompanha a vida de Dickie (interpretado por Alessandro Nivola) e suas atividades criminosas. Ele é filho do grande mafioso “Hollywood Dick” Moltisanti – Ray Liotta numa escalação apropriada, dado o quanto a série devia a Os Bons Companheiros (1990) – e está subindo na organização. Ele também é muito amigo da família Soprano, e praticamente se torna uma figura paterna para o pequeno Tony (William Ludwig). Mas é época de tumultos raciais em Newark e o associado negro de Moltisanti, Harold McBrayer (Leslie Odom Jr.), se envolve com o movimento e aos poucos passa a se opor à máfia italiana branca e a virar inimigo do seu antigo aliado.

No meio tempo, Tony cresce, fica adolescente – e passa a ser vivido por Michael Gandolfini, filho de James Gandolfini, o icônico protagonista da série original – e testemunha à distância pedaços da tragédia do seu “tio” e ídolo, enquanto se depara com o caminho mafioso que seguirá pelo resto da vida. E de vez em quando ouvimos uma narração de além-túmulo, com a voz de Imperioli comentando os acontecimentos.

FANSERVICE PREDOMINA

No comando de The Many Saints of Newark estão o criador de Família Soprano David Chase, o co-roteirista Lawrence Konner e o diretor Alan Taylor, que volta ao universo da série depois de comandar os blockbusters Thor: O Mundo Sombrio (2013) e O Exterminador do Futuro: Gênesis (2015). Ou seja, são pessoas que conhecem Sopranos de trás para frente e estiveram envolvidos na produção que se transformou em um fenômeno cultural. A direção de Taylor é eficiente e precisa, parecida com o estilo da série de TV, mas agora em um formato maior e com recursos novos. Do diretor, não se pode reclamar. Curiosamente, é justamente no roteiro que o filme fica devendo.

Nele, acompanhamos duas linhas narrativas. Primeiro com Tony. Bem, tudo que vemos nela é fanservice – lá vai o termo da moda – puro e simples. The Many Saints of Newark não mostra nada sobre ele que já não soubéssemos pelos episódios da TV: como ele tinha futuro, mas foi sabotado pela família e pela própria inércia; a relação com Lívia (Vera Farmiga), sua mãe dominadora; e o desespero existencial típico da série que era encarnado pelo personagem. E o roteiro tenta ligar a trajetória de Dickie com a de Tony e também com a de Chris. Vemos até uma recriação de uma cena do seriado – a prisão de Johnny Soprano (Jon Bernthal) vista pelos olhos do próprio filho – e um ou outro momento que, na série, foram apenas mencionados.

O que eleva as cenas do jovem do Tony é a atuação de Michael Gandolfini, que é surpreendente – ele não imita o pai, não faz uma mera caricatura, mas consegue trazer de volta o Tony Soprano de uma forma que ainda não tínhamos visto, mais leve e vulnerável. O filme realmente parece ser o início de uma promissora carreira para o ator.

Já sobre a trama principal é a de um personagem autodestrutivo. O Dickie de The Many Saints of Newark é uma figura sempre interessante: carismático, mas inseguro; tem porte de astro de cinema, mas é dado a explosões súbitas de violência; e depois tenta se redimir. Pena que esse protagonista cativante sofra com algumas decisões incompreensíveis do roteiro: por exemplo, o fato súbito da amante dele começar um relacionamento com Harold. É como se alguns desenvolvimentos do roteiro pedissem por mais tempo para serem construídos – talvez não fosse o caso de uma minissérie ao invés de um longa de 2 horas?

Por consequência, o desfecho do filme e o paralelo que The Many Saints of Newark tenta fazer entre as três figuras – Dickie, Tony e Chris – não atinge de maneira poderosa como deveria. Apesar disso, o encerramento até traz uma surpresa que modifica nosso entendimento sobre um personagem-chave da série. E também é preciso ressaltar a atuação poderosa de Alessandro Nivola. Assim como Gandolfini nas suas cenas, Nivola é o centro poderoso do filme sempre que aparece. Ele o domina e o seu retrato de Dickie é sempre verdadeiro. No fim das contas, o longa é elevado por essas duas atuações.

PASSADO MENOS INTERESSANTE DO QUE PARECE

Para os fãs de longa data de Família Soprano, é legal ver a origem, por exemplo, do topete do Silvio Dante (!) ou reconhecer aquele incidente ou aquela figura que apareceu ou foi mencionada em algum episódio. Mas o excesso de fanservice o torna algo para os já iniciados – novatos no universo Soprano até podem compreender a história e gostar do filme, mas perderão várias nuances presentes aqui.

O filme não atinge seu completo potencial, ainda mais em se tratando do fato de estar ligado a um dos trabalhos mais emblemáticos da cultura pop das últimas décadas. Quando criadores de obras de arte marcantes as revisitam anos depois, muitas vezes o resultado deixa a desejar.

The Many Saints of Newark está longe de ser um desastre, mas a lição dele é bem clara: quanto mais se investiga o passado, menos interessante ele começa a parecer.

CRÍTICA | ‘Deadpool & Wolverine’: filme careta fingindo ser ousado

Assistir “Deadpool & Wolverine” me fez lembrar da minha bisavó. Convivi com Dona Leontina, nascida no início do século XX antes mesmo do naufrágio do Titanic, até os meus 12, 13 anos. Minha brincadeira preferida com ela era soltar um sonoro palavrão do nada....

CRÍTICA | ‘O Sequestro do Papa’: monotonia domina história chocante da Igreja Católica

Marco Bellochio sempre foi um diretor de uma nota só. Isso não é necessariamente um problema, como Tom Jobim já nos ensinou. Pegue “O Monstro na Primeira Página”, de 1972, por exemplo: acusar o diretor de ser maniqueísta no seu modo de condenar as táticas...

CRÍTICA | ‘A Filha do Pescador’: a dura travessia pela reconexão dos afetos

Quanto vale o preço de um perdão, aceitação e redescoberta? Para Edgar De Luque Jácome bastam apenas 80 minutos. Estreando na direção, o colombiano submerge na relação entre pai e filha, preconceitos e destemperança em “A Filha do Pescador”. Totalmente ilhado no seu...

CRÍTICA | ‘Tudo em Família’: é ruim, mas, é bom

Adoro esse ofício de “crítico”, coloco em aspas porque me parece algo muito pomposo, quase elitista e não gosto de estar nesta posição. Encaro como um trabalho prazeroso, apesar das bombas que somos obrigados a ver e tentar elaborar algo que se aproveite. Em alguns...

CRÍTICA | ‘Megalópolis’: no cinema de Coppola, o fim é apenas um detalhe

Se ser artista é contrariar o tempo, quem melhor para falar sobre isso do que Francis Ford Coppola? É tentador não jogar a palavra “megalomaníaco” em um texto sobre "Megalópolis". Sim, é uma aliteração irresistível, mas que não arranha nem a superfície da reflexão de...

CRÍTICA | ‘Twisters’: senso de perigo cresce em sequência superior ao original

Quando, logo na primeira cena, um tornado começa a matar, um a um, a equipe de adolescentes metidos a cientistas comandada por Kate (Daisy Edgar-Jones) como um vilão de filme slasher, fica claro que estamos diante de algo diferente do “Twister” de 1996. Leia-se: um...

CRÍTICA | ‘In a Violent Nature’: tentativa (quase) boa de desconstrução do Slasher

O slasher é um dos subgêneros mais fáceis de se identificar dentro do cinema de terror. Caracterizado por um assassino geralmente mascarado que persegue e mata suas vítimas, frequentemente adolescentes ou jovens adultos, esses filmes seguem uma fórmula bem definida....

CRÍTICA | ‘MaXXXine’: mais estilo que substância

A atriz Mia Goth e o diretor Ti West estabeleceram uma daquelas parcerias especiais e incríveis do cinema quando fizeram X: A Marca da Morte (2021): o que era para ser um terror despretensioso que homenagearia o cinema slasher e também o seu primo mal visto, o pornô,...

CRÍTICA | ‘Salão de baile’: documentário enciclopédico sobre Ballroom transcende padrão pelo conteúdo

Documentários tradicionais e que se fazem de entrevistas alternadas com imagens de arquivo ou de preenchimento sobre o tema normalmente resultam em experiências repetitivas, monótonas e desinteressantes. Mas como a regra principal do cinema é: não tem regra. Salão de...

CRÍTICA | ‘Geração Ciborgue’ e a desconexão social de uma geração

Kai cria um implante externo na têmpora que permite, por vibrações e por uma conexão a sensores de órbita, “ouvir” cada raio cósmico e tempestade solar que atinge o planeta Terra. Ao seu lado, outros tem aparatos similares que permitem a conversão de cor em som. De...