Quando pensamos em produções de terror é muito fácil associar suas tramas a existência do sobrenatural, do desconhecido, mesmo que existam muitos títulos onde o vilão se trata na realidade de uma pessoa como qualquer outra. Contemplando essas duas linhas narrativas, ‘Missa da Meia-Noite’ se sai muito bem em apresentar o ser humano como o verdadeiro motivo para ter medo.
Veterano no gênero, o diretor e roteirista Mike Flanagan recorre cada vez menos a jumpscares e ao sobrenatural para explorar o fanatismo religioso como o verdadeiro mal a ser temido. E, embora a série tenha bastante êxito em criar uma atmosfera de suspense e abordar amplamente a temática central, existem muitos elementos e até mesmo tramas já vistas em outras produções de seu criador, o que torna a experiência menos prazerosa, repetitiva e até previsível.
CRIAÇÃO DE ATMOSFERA ÚNICA
Sendo também a mente por trás de ‘A Maldição da Residência Hill’ e ‘A Maldição da Mansão Bly’, Flanagan deixa os fantasmas de lado mantendo a nova série mais próxima da realidade com elementos atrelados a sua própria vida como a luta contra o alcoolismo, o que é visto através do protagonista Riley Flynn (Zach Gilford). Na trama, Riley volta para sua cidade natal, a Ilha Crockett, após ser preso devido a um acidente desencadeado justamente pelo vício.
A cidade em si é basicamente um fantasma: poucos habitantes resistem no povoado costeiro após o derramamento de óleo comprometer grande parte da economia local. Dado este cenário, muitos se apegam à fé para enfrentar a realidade, o que fica mais fácil com a chegada do carismático padre Paul (Hamish Linklater) acompanhado de eventos milagrosos e revelações assustadoras.
Não é difícil de se envolver em ‘Missa da Meia-Noite’, afinal, Flanagan ambienta o clima de mistério como poucos atualmente. Isso deve-se graças à direção de fotografia Michael Fimognari, parceiro do diretor desde “O Espelho” (2013). Por outro lado, a montagem do próprio Flanagan acaba optando por incômodos cortes rápidos quando Paul interage com Riley, totalmente diferente dos diálogos do protagonista com Erin Greene (Kate Siegel) que se prolongam naturalmente sem cortes mostrando a proximidade entre ambos e os retratando de forma intimista.
PROTAGONISTA APÁTICO
A relação entre os personagens de “Missa da Meia-Noite” também acaba sendo um grande problema para o desenvolvimento da narrativa, pois, a trama principal ocorre através de Riley, um protagonista bem apático. Por diversas vezes, a atuação de Gilford sucumbe a Linklater e Siegel, sem espaço para o público se identificar com seus dramas ou mesmo sentir sua falta na história, tornando-se alguém esquecível.
Responsável por conduzir junto de Gilford as revelações da série, Hamish Linklater se sai muito melhor ao apresentar um padre caridoso e, ao mesmo tempo, imponente. Já Kate Siegel nem precisa de maiores explicações por ser figurinha carimbada em produções de terror e, embora ela domine este gênero, seu monólogo sobre a morte é um dos grandes pontos altos de “Missa da Meia-Noite”.
A marca de Flanagan
Mesmo com uma criatura perfeitamente caracterizada e cenas bem gráficas de horror, Flanagan impõe por meio de diálogos e situações absurdas que a fanática Bev Keane (Samantha Sloyan) deve ser considerada a real vilã da história.
Com seu fanatismo, ela destila preconceitos, dita regras sociais e impõem a religião sobre outras pessoas como vários grupos religiosos fizeram recentemente com ataques ao videoclipe “Glowria”, do coletivo amazonense Ateliê 23. Ainda mais, a personagem cria uma situação absurda baseada unicamente em sua fé, colocando a vida de outras pessoas em risco como o massacre de Jonestown nos anos 1970. Enfim, uma série com os dois pés fincados na realidade.
Com maior envolvimento de Flanagan em ‘Missa da Meia-Noite’ em comparação a seus outros projetos, acredito que a série seja também uma vítima da overdose do seu criador: ele dirige e assina o roteiro e montagem de todos os episódios. Assim, existe uma visão unilateral da história, onde ele recorre novamente ao romance secreto e final agridoce, narrativas já vistas em outras produções e um ponto de segurança. Essa repetição não é mal executada, mas passa a impressão de que a série merecia mais, porque existe motivação, bons elementos visuais e uma temática muito bem abordada.