José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – “As Verdades”, ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar. 

A trama de “Uma Família Feliz” – dolorosamente óbvio na ironia do seu título – revolve em torno de um mistério: quem está por trás dos estranhos ferimentos que despontam nos corpos das criancinhas da família-título? Daí vem o choque: todas as suspeitas apontam para Eva (Grazi Massafera), a mãe das meninas. Vicente (Reynaldo Gianecchini) gradualmente compra a ideia de que sua esposa é de fato desequilibrada. Como tem de ser, as coisas seguem escalando a partir daí. 

Talvez a trama, assim resumida, tenha soado mais interessante do que realmente é. Algumas reviravoltas do longa precisarão ser discutidas com calma mais à frente, mas já vale adiantar que a experiência de assistir a este “Uma Família Feliz” segue uma progressão que vai do tédio à irritação ao interesse e de volta à irritação. Explico. 

 ENTRE O INTERESSE E A IRRITAÇÃO

Todas as suspeitas apontam para Eva, já disse. Isso seria interessante caso “Uma Família Feliz” não tratasse a moça como a culpada desde o início. Belmonte faz com que Massafera reaja aos acontecimentos iniciais com um misto de tiques nervosos e olhares aflitos que só servem para incriminá-la. A culpa não é da atriz; acho mesmo que a presença de Massafera em cena é bastante interessante. 

O que me atrai nos atores são os pequenos detalhes de sua fisicalidade: aqui, são as veias saltadas no braço da moça enquanto usa uma pá, as narinas infladas enquanto escuta algo irritada, as linhas tesas do pescoço conforme o cerco se fecha. Mas o fato é que durante toda a primeira metade, o longa parece estar sendo sufocado pelo peso das próprias arapucas, como se se embolasse nas artimanhas do gênero. 

Se partíssemos da certeza total da inocência da personagem, por exemplo; se os estranhos incidentes que afligem sua residência nos parecessem, inicialmente, totalmente alheios às suas ações; e se, aí sim, nossas suspeitas aumentassem gradualmente, teríamos um longa instigante. Mas Belmonte escolheu a maneira errada de enquadrar a história. Principalmente quando algumas das reviravoltas sugeridas a partir da metade da projeção se mostram, ao final, irrelevantes. 

SPOILERS ADIANTE

Aqui será preciso adentrar no território dos spoilers. O caso é que lá pelas tantas “Uma Família Feliz” decide apontar para a possibilidade de um mistério à la “Rebecca, a mulher inesquecível”, de Alfred Hitchcock. Descobrimos que Eva, é na verdade, a madrasta das crianças: a mãe biológica morreu num suspeito acidente de barco. Tem início então um flerte com ideia de uma presença fantasmagórica da falecida naquela casa, o que seria interessante. Eu diria até que boa parte dos pecados do filme seriam redimidos caso ele seguisse com a ideia que parece construir: a de que a morta está, de alguma forma, viva. 

Mas acaba que essa é só uma das hipóteses que a trama levanta para despistar o espectador. A verdade é mais estúpida: estamos no território das crianças psicopatas. Eva é inocente; a culpa recai sobre uma de suas meninas angelicais. É quando a irritação toma conta de vez. O tiro sai pela culatra porque passamos a reavaliar toda a construção de Belmonte. O erro fatal do longa, e que remete justamente à tediosa primeira metade, é tentar cortar pros dois lados: tornar Eva uma vilã (já mencionei que o filme a enquadra assim, como mera forma de despistar o espectador) ao mesmo tempo em que quer fazê-la vítima do patriarcado. 

Sim, porque vemos o modo como as pressões da maternidade recaem sobre ela; na verdade, pouco sabemos sobre essa mulher que não sejam suas frustrações domésticas. Mas o resultado da equação de Belmonte é esquizofrênico: a coisa de representar as dores e a solidão da mulher no seio familiar ao mesmo tempo em que sua câmera a vilaniza acaba soando como uma espécie de pitch cínico. 

Exceto que, como já dissemos, Eva não é a vilã. E, no entanto, como foi assim que Belmonte a enquadrou – em outras palavras, como a mão do diretor se faz sentir nesse retrato, induzindo-nos a essa conclusão precipitada –, a solução acaba soando ainda mais pueril. A história desaba de vez. 

No fim das contas, é até difícil identificar as intenções do diretor: a atmosfera histérica do condomínio classe A de Eva e, principalmente, a bandeira do Brasil durante a cena pós-créditos dão a entender que temos aqui um retrato tragicômico da família de um cidadão de bem. Assim, Eva seria o elemento estranho a essa organização tóxica, de modo que a tal cena pós-créditos seria algo como um retrato de família irônico. Poderia ser o caso, e seria mesmo interessante se “Uma Família Feliz” que precedesse tudo isso fosse mais histriônico, tivesse personalidade o suficiente para engajar com essas ideias ao longo da projeção. Do jeito que está, parece que Belmonte e cia. estavam jogando ideias na tela à procura de alguma que colasse.