Nas duas primeiras temporadas de House of Cards, Frank e Claire Underwood se comportaram como verdadeiros enxadristas, armando as jogadas que os levariam ao mais alto nível de poder em Washington. E jogaram bem: ao final da primeira temporada Frank havia se tornado o vice-presidente dos Estados Unidos, e ao longo da segunda uma série de eventos cuidadosamente calculados por ambos levaram à renúncia do Presidente Walker. Claro, no jogo eles contaram com um pouco de sorte e também foram impiedosos o bastante para sacrificar alguns peões ao longo do caminho – como as duas pessoas que morreram e outras cujas vidas foram irremediavelmente prejudicadas – mas o ponto é que eles quase sempre estiveram no comando da partida. Quando Frank bateu sua mão na mesa no final da segunda temporada, era como se ele estivesse derrubando o rei inimigo no tabuleiro de xadrez.

Nesta terceira temporada, a série continua fascinante justamente por mostrar que os enxadristas impiedosos também têm coração. Ao longo dos 13 episódios – como sempre, disponibilizados de uma só vez pelo Netflix, o famoso provedor mundial de filmes e séries on-line e que é também co-produtor de House of Cards – vemos o governo do Presidente Frank Underwood (Kevin Spacey) funcionando por dentro. A temporada se inicia alguns meses depois do final da segunda e o governo Underwood sofre ataques por todos os lados: crise econômica, popularidade em queda, e até o seu partido – o Democrata – não considera Frank uma aposta viável para reeleição.

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Ele parece estar vivendo a clássica situação do “Conquistar o poder foi fácil, manter é que é difícil”. Porém, mesmo apesar das dificuldades, ao longo da série uma coisa sempre esteve nas mentes dos espectadores: Frank sempre tem uma carta na manga. No seu caso, é o ambicioso e controverso programa para gerar empregos e impulsionar a economia do país, intitulado “America Works” (literalmente significando “A América Trabalha”).

Ele luta para fazer o America Works se tornar realidade, se envolve em disputas diplomáticas com a Rússia e num plano para trazer paz ao Oriente Médio, e finalmente parte para a disputa eleitoral visando a nomeação do Partido Democrata para as eleições de 2016. Nesse meio tempo, a não menos ambiciosa Claire (Robin Wright) não se contenta com o papel de primeira-dama e consegue fazer com que seu marido a nomeie embaixadora da ONU – um processo que causará atrito entre os outrora tão unidos Underwood.

Esse atrito provém de uma simples constatação que, para Claire, fica clara ao longo dos episódios: por mais que a relação entre ela e Frank tenha sido quase “simbiótica” ao longo dos anos, no fim das contas só um deles pode se sentar na cadeira de presidente. Ambos são definidos pelas suas ambições, e a fachada do casamento deles – perfeita, no exterior – esconde as suas verdadeiras naturezas. Tanto Frank quanto Claire são duas cobras criadas, e acreditar que uma delas pudesse um dia querer parar de morder talvez fosse uma fantasia forte demais para o casal visto no início da série.

A evolução do relacionamento entre Claire e Frank é o centro da temporada, talvez até mais do que nas anteriores, mas a essa altura a série já se mostra confiante o suficiente para enfocar também os dramas de outros personagens. O relacionamento entre Jackie Sharp (Molly Parker) e Remy Danton (Mahershala Ali), dois aliados próximos de Underwood, parece o reflexo no espelho do casal principal: o sentimento genuíno de ambos contrasta com a relação de interesses do presidente e da primeira-dama. E é interessante também observar o arco do sombrio Doug Stamper (Michael Kelly). O maior associado de Frank é visto num processo de recuperação, tanto física quanto emocional, após sua quase morte no final do ano anterior. Stamper é o personagem-chave da temporada: a sua lealdade, ou falta dela, ao presidente mantém o espectador em suspense por quase todos os episódios.

Os roteiristas aliam trama com caracterização com elegância, dando-se ao luxo de tomar algumas opções interessantes ao longo da temporada. Como a ideia de centrar as atenções, no primeiro episódio, em Stamper e na sua reabilitação pela maior parte do tempo; ou a sofisticada noção de usar as narrações dos dois escritores, interpretados pelos ótimos Paul Sparks e Kim Dickens, para expor os conflitantes pontos de vista sobre os acontecimentos do oitavo episódio. Claro, em se tratando de House of Cards alguns absurdos são meio esperados – na vida real, um político que quisesse mexer nos fundos de pensão em qualquer país e dissesse ao povo que ele “não tem direito a nada”, como Underwood faz, provavelmente enfrentaria problemas sérios, o contrário daquilo visto na série. Mas de modo geral, essa terceira temporada se caracteriza pela elegância narrativa.

A série, obviamente, pertence a Spacey e Wright e eles nunca tiveram material melhor para trabalhar do que nesta temporada. Mesmo assim, dois atores merecem destaque por até conseguirem roubar a cena em alguns momentos: Elizabeth Marvel e Lars Mikkelsen. Marvel já havia aparecido no finalzinho da segunda temporada como Heather Dunbar, encarregada das investigações do processo Walker. Aparentemente incorruptível, agora ela sofre uma transformação ao disputar com Frank a nomeação dos democratas – o arco dela, da honestidade para a concessão moral, é interessantíssimo e a atriz se mostra intensa. E Mikkelsen, no papel do presidente russo visivelmente inspirado em Vladmir Putin – com direito até ao Pussy Riot e tudo – se mostra um adversário à altura para Underwood e o ator retrata com perfeição a força e a imprevisibilidade do personagem.

Mas a maior novidade em relação aos anos anteriores é o aspecto emocional e intimista deste ano. É curioso ver Frank e, especialmente, Claire, os contumazes manipuladores, mostrando um lado mais humano e emocional em diversos momentos. Frank, é claro, tem aqueles momentos de quebra da quarta parede nos quais Spacey se mostra um dos mais cínicos e intensos atores do momento – curiosamente, há menos desses momentos neste ano, mas uma visita ao cemitério e uma cusparada prometem entrar para a lista dos “melhores momentos” de Frank. Mas pode-se até dizer que é Wright quem mais brilha agora, transmitindo toda a inquietação de Claire mesmo sem mexer um músculo da face. Ela atua para dentro e em alguns momentos deixa a frieza exterior da personagem derreter, fazendo de Claire uma figura mais complexa e humana do que vimos anteriormente.

Tanto Frank quanto Claire são vistos nesta temporada reagindo de forma mais emocional aos acontecimentos que os cercam. Ela luta para redefinir seu papel dentro do relacionamento e da própria Casa Branca; ele em diversos momentos arrisca tudo para conseguir manter o poder que alcançou. Mas como ele é o homem – e os últimos episódios introduzem uma visão sexista na equação – no fim das contas ele pode tomar decisões unilaterais que afetam as vidas de todos. Não à toa, nos episódios finais vemos basicamente Frank contra as mulheres da sua vida.

Nesta temporada, que foi a melhor e mais madura da série, House of Cards deixou um pouco de lado as maquinações do casal Underwood e se focou mais no relacionamento deles e em aprofundá-los como personagens, tornando-os até mais humanos, por assim dizer. Ao fazer isso a série se torna ainda mais fascinante. Numa cena Frank diz a Claire que ambos são “sobreviventes”. Para sobreviver é preciso estratégia, e para seu mérito, nesta temporada House of Cards mostrou o outro lado da moeda: até os estrategistas podem ser dominados também pelos seus sentimentos. E pelos apetites, que no caso do casal Underwood, parecem ser insaciáveis.