Sobre o que é O Grande Circo Místico, novo filme do cineasta Carlos Diegues? Eu assisti ao filme e não sei responder ao certo essa questão. É sobre o circo do título? Dificilmente, pois mal o vemos direito ou as mudanças pelas qual ele passa durante as décadas nas quais a narrativa se desdobra. É sobre os personagens que vivem e trabalham no circo? Pior ainda, pois eles mal estão lá. Apesar de serem interpretados por ótimos atores, todos são ferramentas e podem ser descritos com uma ou duas palavras. É sobre o cinema, com Diegues tentando fazer um paralelo – manjado, é verdade – entre o espetáculo circense e aquele que vemos quando entramos na sala escura? Bem, se for sobre isso… Aí é que a experiência vai para o brejo de vez.

Baseado num poema de Jorge de Lima, que por sua vez inspirou um musical de Chico Buarque e Edu Lobo, o filme se centra na trajetória da família Knieps ao longo do século XX. O jovem Fred (Rafael Lozano) se torna dono de um circo em 1910 e, com o decorrer das décadas, vemos seus descendentes administrando, se apresentando nele e vivendo do tal circo.

Isso de cara já define um dos problemas do filme: ele é bastante episódico, com a narrativa na primeira metade se mostrando incapaz, ou desinteressada, em desenvolver os personagens que nos conduzem pelas décadas. Nessa fase do longa, todo mundo aparece por uns 20 minutos, suas personalidades são esboçadas nos traços mais amplos possíveis – quando são – e depois eles somem para dar lugar a outros protagonistas.

Já a segunda metade do filme nem isso tem. Quando vemos, por exemplo, o personagem Oto (Juliano Cazarré) sentindo atração pela irmã, ou a trapezista Margarete (Mariana Ximenes) não suportando ser tocada por qualquer homem, simplesmente precisamos aceitar esses traços de personalidade porque o filme não nos dá nada, não explica nada, não contextualiza nada. A impressão é de que o cara quer cometer incesto só porque o filme quer, deixando tudo esquisito apenas pelo prazer da própria esquisitice. Quando vemos todo o drama sexual de Margarete, ele se destina apenas à construção do final artificial e com certa dose de cinismo. Ou seja, os personagens são ferramentas, nem se tenta aprofundá-los, e como resultado não dá para se envolver com o filme.

Na verdade, o protagonista do filme é diretor. Diegues – sinceramente, precisamos puxar muito pela memória para lembrar qual foi o último bom trabalho dele – até cria um ou outro bom momento visual, especialmente no início do filme. Há um close expressivo de Fred, outro momento interessante com ele e a imperatriz (Catherine Mouchet) com seus reflexos numa vidraça separados, e mais à frente uma junção na montagem de vários planos circulares que mostram a passagem de tempo dentro do circo. Diegues faz do filme uma experiência estética, repleto de uma estilização que, infelizmente, é incapaz de sustentar o longa por si só quando as narrativas são tão rasas.

Há também um subtexto estranho no longa, com várias das suas personagens femininas sendo maltratadas por homens ou servindo a interesses masculinos. A certa altura do filme uma personagem aparentemente morre por transar com um homem de genital grande demais – o francês Vincent Cassel, marcando presença em mais um filme brasileiro. O tom da cena é meio cômico. Há o ângulo do incesto. Outra personagem é estuprada. Outras duas são denegridas e prostituídas. Tudo isso é mostrado de forma meio banal, o que acaba sendo incômodo.

Mas o incômodo maior é mesmo pelo vazio da experiência como um todo, simbolizado na cena em que uma das personagens sofre um grave acidente no picadeiro e a apresentação continua, de modo histriônico e ao som de uma bela canção triste, enquanto a mulher caída é atendida por um médico lá mesmo (!). O interesse ali é apenas no momento cinemático, no videoclipe bonito. Ou pela cena final, com mais alguns corpos femininos expostos em mais uma tentativa poética de emocionar o espectador. Pena que quando vemos essa cena em contexto, o que acontece imediatamente antes desse momento “poético”, percebe-se certa dose de cinismo por parte de Cacá Diegues.

Se O Grande Circo Místico é também sobre o cinema, então ver a prostituição do final não pinta uma boa imagem da atividade à qual o diretor dedicou sua vida. Num filme repleto de desgraças entremeadas de momentos “poéticos”, Diegues acaba colocando seu próprio filme numa posição estranha. Nada contra o cinismo em si, mas há certo descompasso cognitivo aí, com as algumas cenas deploráveis sendo bem deploráveis e as cenas de encantamento não sendo tão encantadoras assim. A beleza desses momentos é fugidia ou vazia; o que na verdade fica é uma feiura incômoda e estranha num filme que deseja tanto criar poesia e lirismo.