“Bela Vingança” (péssimo tradução e até com spoilers de “Promising Young Woman”) consegue embrulhar o estômago do espectador muito mais do que 99% dos filmes de terror com tripas voando ou o sadismo de um Eli Roth. Esta mistura de comédia, drama e terror dirigida e roteirizada por Emerald Fennell (a Camilla Parker Bowles da quarta temporada de “The Crown”) apresenta um olhar clínico sobre as nojentas estruturas machistas da sociedade e os efeitos devastadores para as suas vítimas.
O filme acompanha a história de Cassandra Thomas (Carey Mulligan), ex-estudante de medicina e funcionária de uma cafeteria. Assombrada por um acontecimento da época da faculdade ocorrido com uma amiga, todas as noites, após o trabalho, ela costuma ir a boates e, fingindo estar bêbada, se deixa levar pelo primeiro idiota que aparece para ‘salvá-la’. Sempre com segundas intenções, os rapazes se veem surpreendidos e assustados ao descobrirem a ‘pegadinha’. A situação muda quando Cassandra reencontra Ryan (Bo Burnham), um ex-colega da faculdade que tem um antigo crush por ela.
Roteirista com passagem pela excelente “Killing Eve”, Emerald Fennell se utiliza da estrutura clássica dos filmes de vingança para reconstituir o caldeirão misógino capaz de perpetuar a cultura do estupro, quase como algo tragicamente natural. De início, “Bela Vingança” reúne o arsenal de atrocidades ditas por homens mundo afora somente nos seus três primeiros minutos quando um trio de babacas observa Cassandra aparentemente fora de si – “essas garotas se põem em perigo desse jeito”, “se ela não se cuidar, alguém vai tirar vantagem”, “isso é pedir para levar”. Isso se repete ao longo de todo filme, porém, de forma mais ácida e sutil, incluindo, as pretensas demonstrações de gentileza e supostos atos de bondade que, no fundo, escondem a torta visão de sexualização feminina constante.
CATARSE E A DESFORRA
O cenário ganha contornos ainda mais profundos ao abordar como o machismo e a cultura do estupro ganham apoio de lugares onde ela menos poderia e deveria se proliferar, no caso, as próprias mulheres e as grandes instituições. A falta de sororidade de uma ex-colega de Cassandra e a forma como a diretora da universidade descredibiliza as graves denúncias e evidências presentes – algo semelhante ao visto no ótimo “A Assistente” – desencorajam a vítima, levam ao desamparo completo, a não-punição dos culpados e à perpetuação destes atos.
Pelo menos, aqui no cinema, Fennell, neste espaço/tempo em que pode comandar as ações e ditar rumos, oferece, sem qualquer tipo de moralismo ou lições de moral politicamente corretas, a catarse e a desforra, ainda que não totalmente completa e por vezes menos transgressora do que poderia, em “Bela Vingança”.
Depois de um início promissor em “Educação” e “Desejo e Reparação” seguidos de trabalhos em que sempre acabou em segundo plano – “Drive”, “Inside Llewyn Davis” e “Shame”, Carey Mulligan confirma, após o ótimo “Vida Selvagem”, a excepcional fase com o melhor desempenho da carreira. Em “Bela Vingança”, ela carrega as diferentes nuances pretendidas pela trama ao dosar o drama do trauma e das marcas de um passado que ainda mexe muito com Cassandra com o romântico, mas, inseguro da divertida sequência ao som de Paris Hilton até o sarcástico e ameaçador da mulher caçadora de cretinos. A trilha, aliás, também é outro destaque, incluindo, a versão de “Toxic”, hit de Britney Spears, em acordes agudos próximos ao de um filme de terror.
As feridas escancaradas por Fennell e Mulligan em “Bela Vingança” são daquelas incômodas por estarem nas entranhas de um modo de agir e pensar ultrapassado pela sua ofensividade e desrespeito extremo para com suas vítimas. Com certeza, haverá os chiliques da turma de sempre vendo seus privilégios e comportamentos cada vez mais censurados, mas, serve também para cada um de nós lutarmos contra si, especialmente, os homens para tentarmos ser ‘menos piores’ do que somos.
Oi Caio!
Fiquei completamente apaixonada por esse filme. O cuidado de Emerald em retratar um assunto, sem definir ao menos uma vez o que aconteceu (apesar do telespectador saber), sem cenas grotescas e desnecessárias! Um filme que me deixou ansiosa, nervosa e sem fôlego.
Só uma nota, Carey não fez Desejo e Reparação, e sim Orgulho e Preconceito, como a irmã de Elizabeth, Kitty.
Um abraço!!