“As Linhas da Minha Mão”, verdadeira revelação da Mostra de Tiradentes deste ano, traz à mente, entre outros, os filmes de Paula Gaitán. Pense, por exemplo, em “É rocha e rio, Negro Leo”, em que a cineasta franco-colombiana constrói um encontro-registro de duas horas com o inquieto músico carioca. Em se tratando de retratos cinematográficos, a natureza dos personagens interfere diretamente no comportamento dos filmes. Negro Leo é um sujeito de fala tranquila, gingada e carioca, capaz, por outro lado, de articular dúzias de pensamentos simultaneamente. Já Viviane de Cassia Ferreira, protagonista do longa dirigido por João Dumans, comporta outras contradições. Seu sorriso é resplandecente, mas tenso; a fala é articulada, mas Vivi (como gosta de ser chamada) parece consciente do perigo sempre iminente de perder o fio da meada; a performatividade sugere erotismo e expansividade, mas ela também parece sempre prestes a implodir e se partir em mil pedacinhos.

Agora, acredite se quiser, mas eu passei pouco mais de três horas em uma van com Vivi, sem ter a menor ideia de que ela seria a estrela do documentário daquela noite. Fizemos o translado BH-Tiradentes juntos, a convite da Mostra. Durante a viagem, era Lê (ou Leandro Acácio), seu primo e parceiro de crime, quem, com sua fala impossivelmente mansa, me saltava aos olhos. Incrivelmente afável, ele logo apertou minha mão pela manhã e me avisou que nossa van havia chegado. Mais tarde, em um restaurante de beira de estrada, Lê trocava palavras simpáticas com o balconista carioca, entre um gole e outro de café. Enquanto isso, Vivi estava fora de vista, em meio à paisagem verde e montanhosa que envolvia o restaurante onde almoçávamos, matutando consigo mesma sobre Deus sabe o quê. Não dei muita bola e me voltei ao meu pão com linguiça (que segurou a minha barra desde 12h até 23h30). Na hora, eu não fazia ideia de que, à noite, passaria 80 minutos com o ouvido colado à fala daquela mulher de cabelos brancos, completamente sintonizado à sua frequência e incapaz de ir embora.

Pois foi a palavra “sintonia” que João Dumans usou ao descrever seu primeiro encontro com Vivi. Fazendo a filmagem de um projeto em que a atriz participava, eles perceberam estar na mesma frequência quando João, operando a câmera, decidiu ignorar as instruções do diretor das gravações e seguiu filmando, mesmo depois do imperativo “Corta!”. Vivi logo depois agradeceu: à frente da câmera, ela estava mesmo tendo um “momento”, como diz, imersa em sua performance. Os dois perceberam, então, que compartilhavam da mesma sensibilidade.

filme nascido dos acasos

Pouco depois, surgiria o ímpeto que nos deu o documentário “As linhas da minha mão”, primeiro longa solo de João Dumans, responsável por “Arábia” ao lado de Affonso Uchoa. Documentário, de fato? “O método”, João explica, “é mais importante que o gênero [documentário ou ficção]”.

E que método é este? A conversa – ou, basicamente, a amizade, iniciada durante a preparação de um projeto de ficção que João não conseguiu realizar. Enquanto conversavam sobre a personagem que Vivi interpretaria, os dois logo se viram falando, na verdade, sobre si próprios. Essa percepção deixou a dupla com uma pulga atrás da orelha, levando-os a abandonar a ficção mais escancarada e desenvolver os registros que os trouxeram ao documentário.

Mas a dimensão performática nunca sai de cena com Vivi, que, no fim das contas, é atriz. É seu corpo que dita o registro da câmera, enquanto dança um balé invisível com João. Isso porque, como Vivi não sabia exatamente o modo como o diretor a enquadrava, todo seu corpo precisava estar atento: “vai que ele [João] tinha se encantado pelo modelo do meu pé, ou por um gesto que fiz aqui no alto”. Ela completa: “ontem alguém me abraçando gentilmente me falou da minha intimidade com a câmera. Intimidade não é bem a palavra porque é meu primeiro filme. Mas com essa amizade, com essa proposição do João de trabalhar, eu criei uma intimidade com ele, com o olhar dele, que são esses olhos azuis”.

A parceria foi tão intensa que Vivi logo assumiu outras funções no filme, inclusive o figurino. Para explicar esse processo, João cita uma das cenas mais fortes do filme em que Vivi relata a um amigo a dificuldade de conseguir o atendimento médico adequado em meio a uma crise bipolar: “Na semana anterior, ela tinha acabado de viver as coisas que narra. Eu tinha falado a Vivi: ‘olha, você vai com um figurino bem sóbrio, preto, elegante, bem discreto'”. 

Qual não foi a surpresa quando, no dia da gravação, Vivi apareceu cheia de colares coloridos e, pior, com um vestido de oncinha. Levando em conta a angústia vivida pela atriz dias antes, e que seria reencenada em breve na gravação, João entrou na vibração proposta por Vivi. “Ali, quando ela aparece com aquele vestido de onça, eu entendi que seria uma cena de vingança, uma cena de desforra”.

Foi um processo de criação conjunta, mas de vivência, também – e uma tão intensa que, nas palavras de Vivi, se tornou “dependência”. Ficou claro, então, que o término das filmagens precisava ocorrer, de forma tão espontânea quanto seu início. A amizade permaneceu, mas “A Linha das Minhas Mãos” não se propõe a criar um registro completo dessa relação. Antes, o longa surge a partir das marcas de um encontro em um recorte específico de tempo. É um filme, enfim, nascido de acasos; são eles que garantem que sua singela especificidade reverbere entre os espectadores, transfixados por aquela mulher gigantesca na tela.