A partir da criação da Ancine, em 2001, o cinema brasileiro passou a ter um importante aliado nas questões voltadas à produção audiovisual. Começando de maneira mais lenta nos seus primeiros anos, o papel da agência foi se intensificando, tendo hoje função fundamental na realização de centenas de produções brasileiras anualmente, a ponto de ser impossível pensarmos o cinema brasileiro sem a participação da mesma.

Mesmo com todo esse suporte, a participação dos poderes estadual e municipal também cumpre (ou, pelo menos, deveria cumprir) um papel muito importante para a produção e sobrevivência dos coletivos culturais nas cidades e estados, principalmente daqueles mais afastados da região Sudeste. O tão alardeado cinema nordestino, mais especialmente o pernambucano, conseguiu um diálogo produtivo com os seus governos locais, que investem valores importantes para a sobrevivência deste cinema que representa não só a sua cidade, mas todo o país em importantes festivais internacionais.

Cinema, a sétima arteQuando Manaus é o cenário

Pensar que a grama do vizinho é mais verde, de fato, não ajuda, e é verdade que há pontos discutíveis nos incentivos que acontecem em outros estados, mas o que não se pode negar é que Manaus está abaixo das principais capitais nordestinas quando o assunto é investimento público em audiovisual.

Atualmente, existem três editais que garantiriam um quórum mínimo de produções audiovisuais amazonenses com recursos do estado e município:

  • o edital de fomento à produção audiovisual no Amazonas lançado pela Secretaria de Cultura (SEC) em dezembro de 2015;
  • e o 002/2016 e o 008/2016, da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult);

Em comum, todos esses editais têm a longa espera para o informe dos resultados e as incertezas de quando se dará o recebimento dos valores aos realizadores locais.

Robério BragaSEC – edital sem rumo

A situação mais complicada é relativa à SEC. O edital de fomento feito em parceria com o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), garantia verbas de R$ 3 milhões, sendo R$ 1 milhão da secretaria estadual e o restante do Governo Federal.

Tais quantias seriam distribuídas entre projetos:

  • Três longas (ficção, documentário ou animação)
  • Um exclusivo para finalização de longa;
  • Dois telefilmes (ficção, documentário ou animação);
  • Seis séries de televisão com mínimo de cinco capítulos.

O resultado da fase preliminar de avaliação referente apenas à análise de documentação dos proponentes foi divulgado em julho de 2016. Ao todo, 22 projetos foram selecionados:

  • “Sol de feira” (Rio Tarumã Filmes)
  • “Cunhantã” (Rio Tarumã Filmes)
  • “Terra Prometida” (Eparrêi Produções Cinematográficas Ltda. ME)
  • “Pedaços” (Eparrêi Produções Cinematográficas Ltda. ME)
  • “Cinco passos” (Formiga de Fogo Filmes Eirele ME)
  • “Visitante” (Formiga de Fogo Filmes Eirele ME)
  • “O céu dos índios” (Luiz Augusto de Lima Gomes ME)
  • “Vila Mamulengo” (Luiz Augusto de Lima Gomes ME)
  • “A liga gay” (Artrupe Produções Artísticas Ltda. ME)
  • “A via da cidadeÇ os Tukanos em Manaus” (Rizoma Produção Audiovisual Ltda. ME)
  • “O Rio Negro são as pessoas” (Original Trade Consultoria Empresarial Ltda.)
  • “As primeiras fotografias da Amazônia – 150 anos de história” (Amazon Picture Perin Filmes Eireli EPP)
  • “Crônica do Busão” (IAÍ Produções)
  • “Ypê O menino Yanomami” (Francisco Ferreira Pinto ME)
  • “Além da cura” (E. da C. Cardoso Publicidade ME);
  • “As rosas” (E. da C. Cardoso Publicidade ME);
  • “Pirôco” (AJ Mendes dos Santos ME);
  • “Sete a um” (AJ Mendes dos Santos ME);
  • “MAWÉ, Tu mau foste, tu mau será, tu mau é!” (FC Sanches e Silva – La Xunga Produções);
  • “Música, a ti dedico minha vida” (Regina Lúcia Azevedo de Melo ME)
  • “Cinema Amazonas” (Rizoma Produção Audiovisual Ltda. ME)
  • “Memórias de um filme que não acabou” (PC da R. Freire Produções cinematográficas).

O problema é que o processo parou por aí. Como o edital previa três fases para análise dos projetos (habilitação, avaliação e documentação), os recursos já deveriam estar investidos nas obras, o que ainda não aconteceu.

Nas últimas duas semanas, o Cine Set entrou em contato com a SEC para obter informações sobre o andamento do edital. Após inúmeras tentativas feitas à assessoria do órgão e ao secretário Robério Braga, infelizmente, não houve respostas.

sergioandrade_aflorestaCrítica ao atraso do edital SEC/FSA

“Como é possível que um edital lançado em 2015 ainda não tenha resultado em 2017? Como que um jovem será estimulado a fazer cinema se o próprio Estado não tem compromisso com o ofício dos seus cineastas?”, questiona o documentarista Aldemar Matias, premiado no Festival de San Sebastian pelo trabalho realizado em “O Inimigo”.

Diretor de “A Floresta de Jonathas” e “Antes o Tempo Não Acabava”, Sérgio Andrade salienta que o atraso na divulgação do resultado pela SEC  é prejudicial também por interferir em outros editais. ““Estamos deixando de concorrer com esses projetos em outros editais do Fundo Setorial do Audiovisual, pois, pelo regulamento do Fundo, não é possível inscrever o mesmo projeto em dois editais das linhas do FSA. Estamos realmente com receio de perder oportunidades em um país em que elas se tornam cada vez mais difíceis. Fora que fica sempre o descrédito de que o Amazonas possa acompanhar com solidez e profissionalismo a boa onda que essas chamadas do FSA estão trazendo ao audiovisual brasileiro. Espero que isso se resolva”, cobra o diretor.

bernardo monteiro de paula manauscult audiovisualManauscult – situação menos complicada

Lançado em junho de 2016, o edital 002/2016 foi feito graças a uma parceria entre o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), do Governo Federal, e a Manauscult. Seriam beneficiados, ao todo, oito produções com total de investimento de R$ 900 mil:

  • 1 Telefilme;
  • 1 Série;
  • 2 Curtas de ficção;
  • 2 Curta de animação;
  • 2 Curtas de documentário.

De 33 projetos inscritos, 11 foram inabilitados por não obedecerem aos critérios descritos no edital. Após nova seleção, os escolhidos foram os seguintes:

Aprovados FSA:

  • “A última sessão” (documentário telefilme – 602 Produções);
  • “Mezanino” (curta animação – Cambará Filmes);
  • “O bagre, a menina e o rio” (curta de ficção -D.E. Santos Barbosa ME);
  • “Lana” (obra seriada em animação – Sérgio José de Andrade).

Primeiro Suplente FSA:

  • “Invisíveis” (telefilme – Medeiros, Athayde e Cavalcante Produções)

Aprovados Manauscult:

  • “O primeiro jantar” (curta de animação – Amazônia Vídeo);
  • “Gentil” (curta documentário – Rizoma Produção).

No final de novembro de 2016, foi lançado ainda pela Manauscult outro edital: o 008/2016, desta vez com a premiação voltada ao fomento de um curta documentário. A justificativa é que o edital anterior não teve o preenchimento total das vagas disponíveis no formato curta-metragem no gênero de não-ficção.

Em 2 de fevereiro, o órgão municipal divulgou o projeto “Declare seu amor delivery”, da Formiga de Fogo Filmes, como o grande vencedor.

De acordo com a Manauscult, não há motivo para preocupação com o andamento de ambos os editais. O setor de comunicação do órgão garantiu a entrega dos valores relativos aos dois editais para os aprovados. Ainda segundo a Manauscult, as verbas têm até três meses após homologação para serem direcionadas ao realizador contemplado, estando as verbas vindas do FSA sujeitas às normas da Ancine.


Descaso com o audiovisual impera

Aldemar Matias considera que tanto SEC quanto Manauscult estão muito aquém do que poderiam fazer para o fortalecimento do setor do audiovisual no Estado e em Manaus. “Isso não é falta de dinheiro: é falta de vontade política. O primeiro grande problema é que o realizador de audiovisual aqui não é visto como um profissional que pertence a uma indústria e que esta precisa ser fomentada. A falta de estratégia, a descontinuidade dos editais, a maneira que eles são formatados: tudo indica que permanece a visão da “ajudinha pro artista” e o que vier é lucro”, afirma.

A necessidade de realizar duas oficinas como contrapartida para uma possível seleção imposta pelo edital da Manaus é, para Aldemar, um símbolo deste descaso com o setor.  “Por que o meu filme em si não é a contrapartida se é para isso que a verba foi designada? Parece um detalhe bobo, mas é um sintoma de que a instituição não vê a obra do artista como algo de valor que está sendo dado à sociedade. Então “compensa esse gasto” com as oficinas. Por que não destinam um edital específico para selecionar professores, em vez de fazer a gambiarra de resolver duas ações (de produção e acadêmica) com um edital?”


Lei Municipal de Incentivo à Cultura e a necessidade de políticas públicas

Em outros tempos mais presente no investimento aos artistas, a SEC diminuiu drasticamente a sua participação nos últimos anos, enquanto que a Manauscult passou a investir mais dinheiro na área nos últimos anos. Tal ponto de vista, porém, é discutível, segundo Sérgio Andrade.

“A SEC, de fato, já fez mais pelo investimento público e ações na área do audiovisual – saudades do Amazonas Film Festival, Concurso Daycoval e até Proarte. A crise econômica pode ter contribuído para uma queda de padrão; já a prefeitura era uma pasmaceira que não se definia. No entanto, não acho que houve inversão. As duas entidades têm muito o que caminhar, pois, ambas não possuem um mecanismo legal de fomento à cultura que evite a descontinuidade e a falta de gestão”, opina o diretor dos longas “A Floresta de Jonathas” e o “Antes o Tempo Não Acabava”.

Uma tecla muito batida nos últimos anos é a implementação da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Ouve-se muito falar que ela está perto de ser colocada em prática, mas, até o momento, tudo ainda está no campo da promessa. “As leis de incentivo à cultura têm se mostrado um bom caminho para o desenvolvimento do audiovisual e de todos os outros segmentos culturais. Os produtores e realizadores de Manaus precisam dessa oportunidade, os empresários precisam ser aliados da cultura de nossa cidade. O prefeito precisa encaminhar para a Câmara de Vereadores a proposta da lei. Ele prometeu em campanha”, diz o produtor audiovisual e representante do setor de cinema e vídeo do Conselho Municipal de Cultura, Paulo César Freire.

“Antes de cobrar como cineasta, cobro como cidadão. Exijo do Estado uma política cultural abrangente e consistente, para não ter que voltar a ver presídio superlotado em rebelião com gente esquartejada. E se o Poder Público não vê relação de uma coisa com a outra… nosso caso é grave”, finaliza o documentarista Aldemar Matias.