Fazer a cinebiografia de um indivíduo que concorre, literalmente, a uma “vaga” de santo tem suas vantagens e desvantagens. A Irmã Dulce que dá nome ao mais novo filme de Vicente Amorim (“Corações sujos”, “Confia em mim”) é uma importante figura religiosa brasileira, cujos feitos a colocam na fila para canonização pela Igreja Católica e fez ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz. Por um lado, o caráter extraordinário de sua vida a transforma num personagem interessante para o universo cinematográfico; por outro, o risco de que pressões diversas façam com o que o filme a retrate como perfeita (portanto, inumana) torna real a possibilidade de que a empatia com o público seja prejudicada. “Irmã Dulce” bem que tenta se esquivar deste último, mas não sai ileso ao final da projeção.

 Como era de se esperar, “Irmã Dulce” começa com a personagem-título dando início a sua saga de caridade no interior da Bahia, cobrindo um período de 1940 a 1980. Interpretada com esforço por Bianca Comparato (na juventude) e com maior domínio por Regina Braga (em idade mais avançada), o filme esquece que a bravura e ousadia da freira ao lutar por melhores condições de vida dos pobres poderiam ser acompanhadas de sutilezas que a colocariam no plano das demais pessoas (afinal de contas, ela realmente existiu, oras), ao invés de canoniza-la de antemão.

 Por mais que ambas as atrizes, cada uma a seu jeito, tentem humaniza-la, a narrativa se constrói de maneira fechada demais. Fica apenas a constante tosse da freira, que tinha problemas pulmonares, para nos lembrar de que ela não é um anjo caído do céu, e sim uma mulher de carne e osso com vontade de botar a mão na massa pela fé. Aliado a isso, fica a incongruência de se colocar duas atrizes para mostrar a passagem de tempo e idade de Irmã Dulce, mas deixar outros vários personagens serem interpretados pelos mesmos atores. Essas simplificações são incômodas, assim como acontece quando uma ou outra figura surge de maneira simbólica para representar as diversas pessoas que passaram na vida da freira, a exemplo do menino João (Amaurih Oliveira). Tal como em “Tim Maia”, esse recurso empobrece o universo multifacetado das personagens reais.

 Com algum cuidado, o trabalho de fotografia mostra um equilíbrio entre qualidade e a cara popular que o filme, ainda que não seja comédia, tenta trazer ao grande público. Os contrastes entre a pobreza dos locais onde a freira atuou e a imponência da igreja surgem, no plano visual, não apenas como contraste entre o terreno e o divino, mas também entre a realidade e o plano ideal que a irmã almejava para aqueles que socorria. A sobriedade do universo das freiras também ganha expressividade a partir da escolha de planos e pela paleta de cores, ainda que a iluminação, no geral, dê uma cara de minissérie da Globo ao longa (formato que, provavelmente, ela assumirá na televisão em alguns meses). Para não ser de todo injusto, que se frise que “Irmã Dulce” está, em termos técnicos, anos-luz à frente dos últimos sucessos populares nacionais.

 Em termos de entretenimento cristão, “Irmã Dulce” tem um mérito a mais ao se debruçar um personagem que, de fato, toma atitudes para tentar mudar as mazelas do mundo, ao invés de apenas destilar um discurso de imposição de fé, tal como o público viu recentemente no sucesso “Deus não está morto”. Verdade seja dita, os dois filmes têm uma construção bastante diversa, mas o brasileiro tenta com mais afinco usar a linguagem cinematográfica a serviço de sua mensagem, de maneira que, independente de crenças pessoais, o público consegue um produto cinematográfico superior com esse “Irmã Dulce”. Para cinéfilos, isso não quer dizer muita coisa, e para os admiradores dos feitos da personagem-título, fica a impressão de que a vida superou, de longe, a arte.

Nota: 5,5