José Mojica Marins teve papel fundamental no meu amor pelo cinema de horror em dois momentos da minha vida: A primeira quando tinha 13 anos e passava as tardes assistindo o finado Cine Trash na rede Bandeirantes apresentado por ele. Ali, meu caráter e amor pelo horror foram formados, um casamento afetivo que até hoje é um dos maiores prazeres da minha vida.
O segundo momento foi quando tinha 18 anos e vi pela primeira vez “A Meia Noite Levarei Sua Alma”. Até esta idade, eu tinha a visão tola que o cinema nacional não prestava. Fiquei impressionado com a qualidade do cinema de Mojica. Provocativo, subversivo, perverso, ousado, estranho, desconexo e perturbador.
O seu fazer cinema não seguia a narrativa tradicional e por isso, você sempre podia esperar pelo imprevisível, onde uma sequência anárquica, sempre genial, te surpreendia. Melhor de tudo isso, era perceber o quanto Mojica filmava bem, com enquadramentos elegantes que destilavam sua atmosfera apavorante, de imagens que captavam os cantos mais escuros dos medos e das trevas do nosso inconsciente.
Ao criar seu folclórico Zé do Caixão, Mojica mostrou que a fronteira entre criador e criatura era torpe e que o misticismo e a realidade se misturavam de forma deliciosa. A nossa mania de sempre valorizar o estrangeiro, geralmente nos faz esquecer de olhar para o quintal de casa. Antes de George Romero lançar seu “A Noite dos Mortos-Vivos” em 1968, Marins com “A Meia Noite ” utilizava a violência e o sadismo para profanar a senzala progressista de ideias que é o cinema brasileiro na época predominava. Em outras palavras, antes de Romero e seus zumbis bombasse nas telas de cinema, o Zé de Mojica delineava o escopo do horror contemporâneo social que ia predominar na década seguinte no gênero.
A verdade é que o maior legado de Mojica foi promover um cinema de guerrilha que priorizava a metalinguagem dentro do horror, para questionar as instituições familiares (e sua hipocrisia), religiosas (o desprezo pela superioridade moral messiânica) e políticas (presente na violência da ditadura). Se isso já merecia diversos elogios, o cineasta ainda adicionava uma boa dose de questionamento filosófico nos seus textos para deixar a bagaça mais existencialista possível.
Por fim, a melhor definição de Mojica é de um verdadeiro esteta e autodidata, um cineasta que dirigia, fazia os roteiros, montava, criava os efeitos especiais e sonoros do seu filme. As dificuldades financeiras só atiçavam mais sua genialidade para driblá-las. Se as suas unhas gigantes causavam incômodo, seu cinema foi gigante em estabelecer a resistência cultural crítica das suas ideias, de alguém que sempre soube enxergar, ler e compreender o lado perverso da sociedade, para assim, enfiar o dedo na ferida e questioná-la.
Nas duas edições (2018 e 2019) em que realizamos os Clássicos de Terror no Casarão de Ideias dentro do Especial de Terror do Cine Set, o cineasta foi homenageado com sessões de seus dois clássicos “A Meia Noite Levarei Sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”. Foi uma felicidade enorme ver a sala lotada por jovens na busca de conhecer o cinema do mestre.
Mojica se foi, mas tenho certeza de que seu Zé do Caixão ficará no imaginário cinéfilo para criar pesadelos sociais tão vivos na cinematografia nacional. Que sua primeira meia-noite em outro plano, seja tão divertida e anárquica quanto suas obras, meu caro mestre. Abaixo, seguem seis filmes primordiais do cineasta.
Finis Hominis (O Fim do Homem) (1971)
Um homem completamente nu emerge do mar e caminha tranquilamente pelas ruas da cidade, causando espanto geral e interferindo de várias maneiras em episódios cotidianos. O maior barato deste filme de Mojica é a sua transgressão. “Finis Hominis” é uma crítica feroz à hipocrisia da sociedade brasileira, expondo as suas principais incongruências: a ilusão dos valores aqui representado na comunidade hippie, a postura antiética dos médicos, o sensacionalismo dos falsos profetas e a perversidade gananciosa da família tradicional. Mojica mostra toda sua veia autoral ao transformar seu filme iconoclasta em algo estranho e super original, que dialoga, de forma incisiva, com a sociedade da época (e se duvidar, com a atual). A sequência inicial do personagem saindo do mar e a cena final são antológicas.
“Finis Hominis” mostra que havia espaço para Mojica brilhar longe da figura de Zé do Caixão, afinal Finis era um cara totalmente diferente da figura repulsiva do famoso coveiro. É um filme bem humorado que revela a anarquia de Mojica em fazer seu cinema de guerrilha, driblando os diversos problemas de produção (a precariedade financeira e o amadorismo dos atores) para questionar os dogmas religiosos (há uma pesada crítica em relação a bíblia) e sociais. Uma experiência cinéfila que merece ser descoberta e funciona como um divertido tapa na cara do conservadorismo.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)
Em sua estreia, Mojica é o Zé do Caixão, um cruel coveiro, que deseja um filho para dar continuidade ao seu sangue. A genialidade de Marins aqui é criar uma obra que dialoga tanto com o macabro quanto com a comédia satírica.” À Meia Noite” é inventivo pela forma como debocha dos dogmas cristãos através da violência explícita, dos questionamentos metafísicos (os diálogos do filme são deliciosos) e a falta de caráter do seu ícone anti-herói.
É curioso como o cineasta transforma “À Meia-Noite” em um cinema experimental bruto, que ao mesmo tempo é sofisticado e audacioso no seu resultado. Há pelo menos duas sequências geniais, uma delas, o discurso blasfemo de Zé em um cemitério. É uma obra que eleva o horror nacional para o patamar contemporâneo ao criar o duelo da razão e da lógica contra a superstição e o sobrenatural. Filmão!
O Despertar da Besta/Ritual dos Sádicos (1970)
É extremamente impactante a abordagem transgressora que Mojica utiliza, para criar o seu terror psicodélico maldito juntamente com os elementos nonsenses e surrealistas do seu cinema de guerrilha. Nele, um renomado psiquiatra injeta doses de LSD em voluntários com o objetivo de estudar os efeitos do tóxico sob a influência da imagem de Zé do Caixão. “Despertar/Ritual” é a expressão máxima do cinema autoral de Mojica, por tanto instigar quanto chocar o espectador. Só mesmo ele, para falar sobre a metalinguagem cinematográfica utilizando sambas enredos e marchas de carnaval. Sua veia marginal possui uma discussão de alto nível intelectual para expor degradação humana da época, com temas relevantes voltados para o uso de drogas, a misoginia sexual e a influência do poder da arte sobre as pessoas.
Em cima destas temáticas, Mojica discorre sobre as falhas da moral humana, produto de um sistema que condiciona a mentalidade humana para o que a sociedade deseja. Uma das melhores reflexões do filme, envolve sua metalinguagem (o próprio Mojica aparece como ele mesmo falando sobre os filmes de Zé do Caixão): Obras cinematográficas subvertem as qualidades morais de uma audiência? A arte é perigosa? São perguntas que inquietam e se tornam poderosas a partir do plot-twist genial na parte final do filme.
Também vale elogiar o talento cinematográfico do diretor para criar imagens fortes através do uso inventivo de cores e montagem como a sequência agoniante dos pacientes sendo submetidos a LSD. Fora do universo de Zé do Caixão, esta obra juntamente com “Finis Hominis” são retratos honestos de defesa do seu cinema, marcado por uma percepção intelectual louca para criar pesadelos sociais tão vivos na cinematografia nacional.
O Estranho Mundo do Zé do Caixão (1968)
Para quem já assistiu várias antologias de terror, “O Estranho Mundo do Zé do Caixão” é uma verdadeira preciosidade que coloca diversos produtos americanos no chinelo. Mojica mantém a sua filosofia doentia dos filmes do Zé do Caixão em três histórias independentes que falam sobre ambição, ganância, obsessão, necrofilia e violência física e psicológica.
O destaque é o último conto “Ideologia”, disparado o melhor. Poderia funcionar como um curta sobre o personagem do Zé do Caixão, ainda que, em nenhum momento, Mojica assuma ou não que o protagonista da história é o ícone personagem. Em “Ideologia” nota-se a genialidade do autor em criar um belo estudo (amoral) da natureza humana em relação a violência e sobre o quanto o instinto prevalece sobre a razão. Há muitas cenas provocativas que desafiam o pudor do espectador. “O Estranho Mundo do Zé do Caixão” prova que Mojica já era um homem à frente do seu tempo, com um cinema vanguardista de excelência que questionava os bons costumes da época.
Esta Noite Encarnarei o Teu Cadáver (1967)
“Esta Noite Encarnarei no Meu Cadáver” é o meu filme de cabeceira do mestre Mojica. Não apenas o roteiro é o mais elaborado da sua carreira, como em “Esta Noite” Mojica cria diversos momentos impressionantes como a sequência genial do inferno psicodélico – a única cena do filme em cores. Através do seu agente funerário macabro, o filme prega sua crença no “nada”, utilizando sua concepção de horror para zombar do moralismo religioso, sem deixar de lado as crenças e costumes do folclore nacional.
Nesta sequência, após sobreviver ao ataque do final de “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, Zé do Caixão continua na sua saga obsessiva da mulher ideal, capaz de gerar o filho perfeito. A continuação também é beneficiada por ter uma produção mais caprichada, com uma fotografia elaborada e uma belíssima cenografia que se faz presente nos cenários e situações criadas por Mojica. Até a narrativa flui em prol da história. É fato é que “Esta Noite” traduz a genialidade de Mojica de mostrar nas imagens, o conceito da loucura como essência do horror nacional.
Exorcismo Negro (1974)
Dentro da filmografia do cineasta não poderia faltar um trabalho envolto dentro da prática do culto demoníaco. A trama macabra e a direção envolvente de Mojica revelam um dos seus trabalhos mais catárticos, mergulhando na culpa e repressão da sociedade conservadora da década de 70 e seus laços familiares escrotos para discutir possessões, rituais, masturbação e violência.
Com a velha metalinguagem bem utilizada pelo diretor, nós acompanhamos o próprio Mojica passando o Natal com os amigos no sítio onde vive para escrever a história de seu próximo filme. No entanto, ele observa coisas estranhas na casa, onde seus amigos passam a ser possuídos por uma força sobrenatural do mal, enquanto precisa enfrentar um culto demoníaco liderado pelo seu alterego Zé do Caixão. Não é à toa que “Exorcismo Negro” é explicito em mostrar a dialética do cineasta, brincando com a questão de criador e criatura por meio do cinismo. Um dos melhores trabalhos de montagem dentro da sua filmografia.
* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.