Em 1939, o star system hollywoodiano já estava mais que estabelecido e os rostos dos atores e atrizes estampavam não apenas pôsteres ao redor do mundo, como também o imaginário de quem sentava na sala escura. Se os clássicos daquele ano são lembrados pelos cinéfilos por técnicas de filmagem e de narrativa ousadas ou por um refinamento nas histórias projetadas, para o público, a memória deles ficou viva muito pelos nomes nas marquises.
Um dos filmes que alimentou esse imaginário e que ajudou a imortalizar a persona de sua protagonista foi “Ninotchka”, obra seminal de Ernst Lubitsch que trouxe a hermética Greta Garbo em sua penúltima aparição nas telonas antes de sua famosa aposentadoria.
Quando filmou “Ninotchka”, a sueca figurava na lista de “veneno de bilheteria”, junto a outros ilustres que a indústria considerava serem sinônimos de fracassos de público, como Katharine Hepburn e Mae West. Isso chega até a ser engraçado, já que, em 1939, Garbo vinha de uma sequência interessante, que incluía “Anna Christie”, “Grande Hotel” (onde proferiu sua célebre frase, ‘I want to be alone’ – ou, simplesmente, ‘quero ficar sozinha’), “Rainha Christina”, “Anna Karenina”, “O Véu Pintado” e “A Dama das Camélias”.
No fim das contas, esses projetos firmaram Greta Garbo como um dos grandes ícones da época. Mais que isso: uma atriz capaz de transpor a persona que os estúdios queriam vender e, no lugar, entregar performances complexas e que iam além da aura intocável ou até mesmo do arquétipo da femme fatale que ela poderia ter encarnado com tanta excelência no cinema noir dos anos 1940.
Por isso, uma das coisas que salta ao ver “Ninotchka” é o trabalho de Greta. Ela surge em uma de suas imagens mais icônicas: a boina, o cabelo dividido ao meio e o andar imponente. Essa imponência, no entanto, é contrabalanceada pela comicidade do roteiro e pela sintonia que a atriz tem com o trio Sig Ruman-Alexander Granach-Felix Bressart, em interações que são uma aula àquelas que, décadas depois, seriam presença garantida em comédias norte-americanas do cinema e até humorísticos brasileiros, como os nossos Trapalhões.
Para além das divagações sobre Garbo
Ao mesmo tempo, nem só de uma grande estrela em ótima forma sobrevive um filme. Ou, do contrário, poderíamos salvar várias obras esquecíveis da Era de Ouro só por terem seus contornos suavizados com closes de Katharine Hepburn, Bette Davis ou tantas outras. Os méritos de “Ninotchka” já começaram nas páginas de seu roteiro, escritas por, entre outros, um então jovem promissor.
Seis anos depois de colocar os pés em Hollywood, o polaco Billy Wilder finalmente teve a chance de mostrar seu talento para construir diálogos sagazes e, principalmente, personagens que não eram exemplos do “ideal” do sonho norte-americano. Isso aconteceu justamente com “Ninotchka”, filme que o colocou lado a lado com aquele do qual seria sucessor natural.
As palavras de Wilder foram um casamento perfeito com a direção cheia de (perdoem-me o trocadilho) garbo de Ernst Lubitsch. Um claro retrato do pós-Primeira Guerra – às vésperas da Segunda, vale ressaltar -, “Ninotchka” se vale da destreza que Lubistch afinou para driblar as censuras impostas pelos estúdios, principalmente pelo Código Hays, que literalmente ditava o que era ou não “moralmente viável” de ser mostrado na tela (em um vídeo dos anos 1970, o próprio Wilder fala das habilidades de Lubitsch e as suas famosas elipses, como no exemplo de ‘A Viúva Alegre’, de 1934, como exemplo do que tornou o diretor lendário).
Lançado em um ano que ficou marcado por outros tantos outros clássicos, “Ninotchka” se destaca nas prateleiras de DVD (e, ah, que sonho seria se também estivesse nos streamings de grande audiência!) pela agilidade e pela acidez. Tão alardeado pela tagline que aponta que ali, enfim, Garbo sorri, ele simboliza também a transição entre dois nomes que tanto se completam. Sem o cinismo de Lubitsch, Wilder poderia até existir, mas o seu cinema talvez não fosse tão mágico.