A cerimônia do Oscar em 2022 tinha tudo para sair marcada pela vitória feminina nas duas principais categorias: direção e filme. Contudo, a violência e o silenciamento de uma mulher é o que fará com que esta edição entre para os anais do não esquecimento. Aproveitando essa situação, permito-me chover no molhado para abordar a questão capilar na representação da mulher negra no mercado cultural.

Minha irmã costuma dizer que o cabelo é o principal atrativo de uma mulher. É o primeiro lugar para quem todos olham ao observar a figura feminina. Não à toa, há uma preocupação constante pelos cuidados capilares que levaram a indústria do setor a ter um crescimento de 4,6% no primeiro ano da pandemia de covid-19, atingindo R$ 23,175 bilhões, segundo informações da Euromonitor Internacional. Tais dados salientam a importância que o cabelo tem e abre margem para que discutamos como isso se relaciona a projeção da imagem e aos conceitos de pertencimento e identidade.

Uma questão de identidade

Com seu Black Power, Pam Grier foi ícone nos anos 1970 na Blaxpoitation.

Durante muitos anos, a identidade negra foi caracterizada por fenótipos como a cor da pele escura, o cabelo crespo, os lábios grossos e o nariz curvo. A classificação de quem seria negro e quem não seria passava por tais caracterizações, ignorando a questão cultural e a ancestralidade. A identidade, contudo, deve ser entendida como um processo contínuo que perpassa por construções étnico-raciais, que resvalam em escolhas que levam a inclusão ou exclusão.

Isso ocorre porque ao posicionar-se quanto a sua negritude, em um país racista sistemático como o Brasil, uma série de desvantagens relacionadas ao preconceito acompanham o indivíduo. No cerne desta questão está o cabelo.

Lembro de uma entrevista dada por Emicida há alguns anos em que o rapper dizia que a primeira vez em que uma criança negra se percebe como tal é na escola. É a partir daí que ela nota as diferenças que sua cor de pele, e, principalmente, seu cabelo irradiam aos outros pares. O processo de exclusão social se inicia a partir deste ponto, sendo atenuado pelos conflitos com relação a sua estética que criam mecanismos capazes de resultar num bloqueio em relação a sua aceitação como sujeito negro ou, ao mesmo tempo para alguns, pode ser a alavanca que irá proporcionar uma identificação mais forte com a sua cultura, ancestralidade e identidade negra.

 Dessa forma, o cabelo se torna a porta de entrada para compreensão sobre a negritude e para percepção de que a mais pessoas que passam por situações semelhante. Algo que ficou evidente em rede nacional nas últimas edições do BBB, quando Babu usou o pente como símbolo de resistência frente as fadas insensatas ou quando João foi atacado por meio de uma brincadeira feita por Rodolfo. Os dois casos foram importantes para que a questão capilar chegasse ao horário nobre da maior emissora do país e alcançasse públicos distintos, incluindo a minha turma de mestrado.

Segundo a pedagoga e ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Nilma Gomes, o cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário.

Isso salienta que o cabelo é um referencial importantíssimo para a auto definição de quem é negro na sociedade brasileira. Quando uma mulher negra assume seu cabelo crespo, ela perpetua sua identidade, nega a estética branca e assume sua cultura e ancestralidade a partir da natureza de seu próprio corpo.

Sexualização via cabelo

Tina Turner foi uma das estrelas colocadas pela indústria cultural no imaginário exótico da opulência do corpo negro.

Entre a resistência que a mulher negra enfrenta está a visão que a imagem midiática produz sobre ela. O seu retrato é de um objeto de sedução, um corpo a ser vigiado, desejado, possuído. É comum vermos representações, no cinema e na arte de forma geral, de mulheres negras sempre em situações que remetem a exploração da sua sexualidade.

Em “Olhares Negros: raça e representações”, bell hooks fala sobre como as artistas negras estão condicionadas a visão que as pessoas têm de seu corpo. Isso ocorre porque a cultura popular contemporânea absorveu o imaginário exótico da opulência do corpo negro que permeou o século XIX, coube a espectadora negra absorver esse pensamento passivamente ou combater a ele com veemência.

Ao observar as cantoras negras que fizeram sucesso no século passado, hooks nota o quanto a sexualização de seus corpos esteve presente na construção do seu processo artístico e como tal projeção envolveu, também, os seus cabelos. A iconografia sexual dada a partes específicas do corpo negro no século XIX, fixou-se no cabelo, sendo este um representante da sexualização animalesca conferida a artistas como Tina Turner, Diana Ross e (por que não?) Elza Soares.

Ironicamente muitas dessas cabeleiras eram sintéticas, construídas artificialmente da mesma forma que a imagem sexualizada que se quer evocar da mulher negra.

Todas essas colocações me fizeram pensar em Jada Pinkett Smith

Piada de mau gosto de Chris Rock sobre Jada Pinkett Smith representa o tipo de opressão e resistência enfrentado por mulheres negras sistematicamente.

O cabelo da mulher é sinal de beleza, força e identidade. Para a mulher negra, ele também tem a ver com questão étnico-racial e a valorização de outros caracteres que não sejam pontos hipersexualisados de seu corpo. O uso do cabelo crespo é um rompimento do ciclo de opressão e um símbolo de resistência ao racismo instaurado na sociedade. Logo, a perda dele é um cercear de tudo o que representa e, consequentemente, coloca suas usuárias na busca por novos ícones e referências.

Isso me faz refletir em quanto tempo não levou para que Jada Smith aceitasse sua doença e conseguisse falar sobre ela em público. Quanto tempo para que ela raspasse seus cabelos e tivesse orgulho de seu visual atual? Como sua autoestima e seu senso de pertencimento foi afetado a partir do diagnóstico? São tantos pensamentos que me assombram diante de sua expressão as palavras indelicadas de Chris Rock, que, para mim, o tapa é apenas uma consequência disso.

À situação constrangedora do Oscar se soma a representação das mulheres negras, as quais nos programas humorísticos são vistas como figuras estereotipadas, enquanto no cinema estão ausentes ou tem corpo e origem negados nas narrativas.

A piada indelicada de Chris Rock toca em lugares fortes tanto no quesito feminilidade, quanto de identidade e ancestralidade. Vinda de um homem negro, torna tudo bem mais pesado e dramático, salientando o lugar de exclusão e inclusão que cabe a mulher negra mesmo entre seus pares. Triste, mas representa o tipo de opressão e resistência que nos é imputado.