Evento responsável pela abertura do calendário brasileiro de grandes festivais, a Mostra de Tiradentes 2022 irá destacar o cinema da Região Norte. São quatro produções selecionadas, sendo duas do Pará (“Meus Santos Saúdam Teus Santos”, de Rodrigo Antonio, e “Uma Escola no Marajó”, de Camila Kzan), uma do Acre (“Centelha”, de Renato Vallone) e outra do Amazonas (“521 Anos / Siia Ara”, de Adanilo).

Em relação à edição anterior, o Amazonas apresenta uma redução no número de participantes – em 2021, participaram “Enterrado no Quintal”, de Diego Bauer, “De Costas Pro Rio”, de Fellipe Aufiero e “O Barco e o Rio”, de Bernardo Abinader. Semelhante com o que houve no ano passado quando o Estado foi cenário para “Seiva Bruta”, do paulista Gustavo Milan, agora, a também paulistana Janaina Wagner rodou “A Curupira na estrada fantasma”, selecionado na Mostra Panorama, na BR-319, rodovia que liga Boa Vista a Manaus.

Tradicionalmente, porém, a Mostra de Cinema de Tiradentes costuma prestigiar o cinema produzido no Amazonas: Sérgio Andrade rompeu a barreira com “Cachoeira”; em 2014, Flávia Abtibol foi selecionada para o evento com “Strip Solidão”“Sandrine”, de Elen Linth, participou no ano seguinte, enquanto “Obeso Mórbido”, de Diego Bauer e Ricardo Manjaro, integrou o evento em 2019.

‘PRÓXIMOS 521 ANOS VÃO SER INDÍGENAS’

Para 2022, o Amazonas chega na Mostra Temática com “521 Anos / Siaa Aira”. O curta-metragem de cinco minutos de duração traz um forte viés político como demonstra a sinopse:

“Urucu vermelho de sangue. Sangue nas mãos ou nas veias, Abya Yala Terra Indígena. Cantos que são falas, armas que são falos. Passarão. Esturro de onça demarcando território. Novos presságios de rasga mortalha. 521 Anos de pátrias amadas desde a invasão europeia. O coma colonial segue, muita gente adormecida em ideias sobre nós, os povos originários. A história foi mal contada, mas nós vamos descontar, vamos recontar. Vamos despertar cada vez mais. Já não dormimos. Cada vez mais vamos ser a natureza. Os próximos 521 Anos vão ser nossos. Os próximos 521 Anos vão ser indígenas”.

“521 Anos / Siaa Aira” é dirigido e roteirizado por Adanilo (“Marighella“), o qual admitiu surpresa pela seleção. “Sinceramente, apesar de reconhecer a qualidade do trabalho, o “521 Anos” é despretensioso e eu não esperava que ele fosse fazer a carreira que está fazendo, indo para sua quarta mostra, e além do mais Tiradentes. Era para ser uma “simples” videoperformance que foi encomendada para o Movimento RGS, evento do Ateliê 23. Mas eu entendo também que nele tem questões muito relevantes para discutirmos, afinal de contas, a ideia era trazer elementos que falassem do coma colonial a qual fomos induzidos no processo de elaboração do Brasil, falar da resistencia indígena. Fico honrado de representar o Amazonas, de poder ser essa voz originária”, disse.

Adanilo, aliás, já prepara outro projeto de temática indígena: no longa “Omágua Kambeba”, ele retrata um momento distinto da trajetória secular de uma família Omágua (Povo das Águas), etnia indígena que habita a região amazônica e ficou popularmente conhecida por Kambeba (em Nhengatu, “cabeça chata”), apelido oriundo da particularidade de terem crânios achatados.

O “521 Anos” é sobre instigar um despertar. É assim que eu me sinto, desperto, despertando. Depois que passei a me interessar pelos universos indígenas, não teve mais volta atrás; é uma imersão sem fim, são muitas possibilidades, diversidades, belezas. Eu sigo buscando minha identidade indígena, e acho que esse trabalho, como outros que venho fazendo, desejam cativar o público a pensar sobre o respeito e valorização aos povos originarios.

Adanilo

diretor e roteirista de "521 Anos / Siia Ara"

PARÁ EM DOSE DUPLA

O Pará chega com duas produções em Tiradentes: o documentário “Uma Escola no Marajó”, de Camila Kzan, faz sua estreia nacional na Mostra Panorama, enquanto “Meus Santos saúdam teus Santos”, de Rodrigo Antônio, segue a premiada trajetória dentro da Mostra Praça. Com isso, o Estado registra o mesmo número de produções da edição passada quando participou com “O Filho do Homem”, de Fillipe Rodrigues, e “Traçados”, de Rudyeri Ribeiro.

Ambientado na Escola Sítio Porto Alegre, no município de Curralinho (distante 149 km de Belém), “Uma Escola no Marajó” acompanha o professor Rui que busca ganhar a atenção das crianças do 3o ano, a nova diretora Leidi e o barqueiro escolar Raimundo que tentam solucionar a falta de combustível ocasionada pelo pouco dinheiro enviado pelo governo. Co-produção entre as produtoras paraenses Pina Filmes e CasaBarco Filmes, o curta nasceu de uma viagem da diretora pelo Acre e sul do Pará, em visita às piores escolas do Brasil, segundo o Ideb (índice de desenvolvimento de educação básica) da época.

Normalizamos um ponto de vista sobre educação que não é interessante. A educação pública não pode ser naturalizada como algo ruim, a educação é um direito de todos e não pode ser direcionada a uma certa região ou à esfera privada. Minha intenção é que a gente possa parar para pensar e falar a respeito das necessidades e particularidades da educação na Amazônia

Camila Kzan

diretora e roteirista de "Uma Escola no Marajó"

Ganhador do prêmio de melhor contribuição artística ao cinema no Festival de Cinema de Vitória 2021 e selecionado para a Mostra Norte do Festival Olhar do Norte após estreia internacional na França, “Meus Santos saúdam os teus Santos” acompanha uma viagem de regresso do diretor Rodrigo Antonio à ilha do Marajó, terra de seus avós.

No local, ele conhece a pajé Roxita e recebe a notícia de que têm guias espirituais de herança. Rodrigo vive sua iniciação na pajelança marajoara e registra sua relação com Roxita, que será sua guia em um encontro com seus ancestrais. Produzido pela Leão do Norte, “Meus Santos saúdam os teus Santos” nasceu da pesquisa de mestrado do diretor sobre a construção de memória de famílias negras no documentário brasileiro.

Meu interesse no cinema se deu pela ausência de imagens de pessoas como eu e do meu território. O cinema se tornou, para mim, uma ferramenta de transformação. Sou cineasta porque quero que futuras gerações, possam hoje e amanhã ter acesso a um cinema no qual elas se vejam, se identifiquem, quero que a próxima geração de cineastas gays, latinos, brasileiros, amazônicos, façam cinema pelo entendimento de que podem fazê-lo e não porque não se veem nas imagens que consomem.

Rodrigo Antonio

diretor e roteiro de "Meus Santos Saúdam Teus Santos"

O acreano “Centelha” fecha o time nortista em Tiradentes. Dirigido por Renato Vallone, o curta-metragem de 26 minutos filmado em preto e branco apresenta o delírio da fome de um homem que incorpora, no decorrer de um ritual ancestral, os demônios de um país doente. Casa e homem tornam-se testemunhos vivos da história. Santuário ou quartel general, as transformações afetam tudo ao redor e provocam a fúria do céu.​

A presença na Mostra Temática marca mais um grande evento que “Centelha” participa: em 2021, o curta do Acre esteve no Festival do Rio na sessão Curtas Novos Rumos, no Festival Visões Periféricas e, neste ano, foi selecionado para a Mostra Ouros Nortes do Festival Olhar do Norte.

com apoio de informações de assessoria